Como governos e organizações regionais atuaram no enfrentamento da pandemia de covid-19 no continente americano? De que forma isso impactou as diversas esferas da sociedade e as relações entre os países? Os(as) autores(as) do Dossiê do Observatório de Regionalismo dedicaram seus estudos à procura de respostas para essas questões na edição publicada em novembro de 2020, sob a coordenação de Karina Mariano, professora livre-docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Regiane Bressan, professora de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco.
Para isso, pesquisadores(as) empenharam-se no mapeamento e entendimento das políticas adotadas por diferentes instituições regionais para enfrentar os efeitos adversos do novo coronavírus, revelando como os processos de integração podem protagonizar ações efetivas diante de problemas comuns entre os Estados. O Observatório de Regionalismo foi criado por estudantes do Programa de Pós-Graduação Interinstitucional em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), sob a coordenação de Mariano e Bressan, com o intuito de ser um espaço de investigação e diálogo entre pesquisadores(as) para debater iniciativas regionais de integração e cooperação. Atualmente, o observatório também está sediado na Unifesp.
Segundo o Dossiê, as instituições regionais revelaram distintos níveis de empenho no combate às mazelas provocadas pela pandemia nas Américas. Números da Organização Mundial da Saúde (OMS), atualizados no início de novembro de 2021, apontavam mais de 94 milhões de casos e 2,3 milhões de mortes na região, figurando como a mais letal para o vírus em todo o mundo. No caso da América do Sul, considerando o número de mortes por milhão de habitantes, destacam-se países como Peru, Argentina, Brasil, Colômbia e Chile. Mas quais fatores colaboraram para esse trágico cenário?
Bressan cita, como principal exemplo, a desarticulação entre os países do Mercosul – bloco formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai –, que revelou os contrastes entre suas políticas de enfrentamento da pandemia, com destaque negativo ao Brasil. “Já o acordo entre Estados Unidos, México e Canadá (USMCA) não apresentou qualquer mecanismo institucionalizado para coordenar ações conjuntas nessa emergência.” Por sua vez, ela complementa, “os países da Aliança do Pacífico (AP) – composta por Peru, Chile, Colômbia e México – concentraram ações na adoção de práticas para superação da crise econômica entre seus membros, mas não houve empenho para políticas comuns de saúde.”
Porém, ainda de acordo com a docente da Unifesp, é possível extrair exemplos positivos desse combate na América Latina, como é o caso da Comunidade do Caribe (Caricom), que atuou por meio da Agência de Saúde Pública do Caribe e criou uma Política Comum de Saúde Pública, garantindo fornecimento de insumos e conhecimento técnico, gestão da informação e capacitação de recursos humanos ligados à saúde. “Além disso, os países da Comunidade Andina (CAN) atuaram por meio do Organismo Andino de Saúde (Oras - Conhu), o qual está empenhado em fortalecer os sistemas de saúde nacionais, compartilhar tecnologias e práticas sanitárias. Eles reativaram a Rede de Vigilância Epidemiológica Andina, articularam os Institutos Nacionais Andinos de Saúde e estão buscando mecanismos de aquisição de vacinas em parceria regional, organização e apresentação de dados referentes a enfermos(as), óbitos e curados(as) da covid-19”, acrescenta Bressan.
Quando o assunto são os sistemas de saúde, Marta Cerqueira, doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interinstitucional em Relações Internacionais San Tiago Dantas, aponta uma “ineficácia estrutural” desses sistemas, reflexo de seu subfinanciamento, das altas barreiras de acesso aos serviços de saúde e, sobretudo, da elevada desigualdade social. Ela destaca, na América Latina e Caribe, a experiência bem-sucedida da Caricom como referência de eficácia no enfrentamento da crise de saúde pública na região, citando a existência prévia de estruturas regionais de cooperação na área da saúde, apoiadas por sistemas nacionais de saúde e proteção social. “Por outro lado, apesar das ações em saúde promovidas pelo Oras-Conhu, os países da América do Sul implementaram suas respostas à crise sanitária de maneira fortemente descoordenada e, em muitos casos, por meio de uma intervenção ineficiente. Situações drásticas a serem destacadas são a desarticulação política entre os países-membros do Mercosul e os colapsos do sistema de saúde ocorridos no Equador, Peru e Brasil.”
Para Mariano, o interessante na análise foi justamente demonstrar que os processos regionais com uma agenda de integração mais ampla – não restrita apenas às questões comerciais – tiveram maior capacidade de promover ações coordenadas, até porque tinham algum tipo de estrutura para lidar com questões de saúde, como no caso do Caricom e da CAN. Ainda segundo ela, outro fator importante foi a percepção dos governos sobre as vantagens de se promover uma ação conjunta. Nesse sentido, ampliando para outras regiões do mundo, “as iniciativas promovidas pela Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) e pelo Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) foram muito interessantes, porque percebe-se uma lógica de articulação tanto de medidas sanitárias, como de combate aos efeitos econômicos da pandemia. A principal diferença revela-se no número de mortos; onde houve cooperação, ele foi bem menor”, conclui.
Pensando em cenários futuros, apesar da complexidade do assunto, Cairo Junqueira, professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (DRI/UFS), explica que a pandemia reforçou a ideia dos blocos regionais não somente como organizações econômicas, mas também políticas, devendo suprir determinadas demandas das sociedades. Ele ressalta duas variáveis que serão imprescindíveis para avaliar o enfraquecimento ou o fortalecimento dos organismos regionais a curto prazo.
“De um lado, tem-se a compatibilidade entre as políticas nacionais e, de outro, a valorização das instituições. Ou seja, o nível de convergência ou afastamento político-ideológico entre determinados governos dentro desses blocos impactará decisões futuras, inclusive no trato do combate ao novo coronavírus. O segundo ponto se refere ao multilateralismo tão em voga nos debates atuais, entendido como o estímulo a decisões coletivas entre países e outros atores, algo também de grande valia para entendermos se a integração regional se fortalecerá futuramente ou se sofrerá mais descrédito em torno de movimentos de crítica à globalização e de aumento do nacionalismo”, revela Junqueira.
Evento virtual de lançamento do Dossiê do Observatório de Regionalismo
Regiane Bressan, docente da Eppen/Unifesp
Karina Mariano, professora da Unesp
CADERNOS DE REGIONALISMO ODR. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, v. 4, 2020. Disponível em:
<http://observatorio.repri.org/dossie/edicoes/vol-4-2020-pt-dossie-a-atuacao-dos-blocos-regionais-em-meio-a-covid-19/>. Acesso em: 12 jul 2021.
Sede do Mercosul em Montevidéu (julho de 2013). Desarticulação entre os países do bloco formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai revelou contrastes entre suas políticas de enfrentamento da pandemia
(Imagem: André Leite Araujo)
Economia, relações internacionais e meio ambiente
Unifesp na linha de frente no combate à covid-19
Edição 14 • novembro 2021