Muito mais do que o simples contorno da lateral de um rosto, o perfil é uma oportunidade de conhecermos as pessoas a fundo. Sejam tímidas ou extrovertidas, novas ou idosas, sejam próximas ou distantes, todas possuem uma história para contar e, apesar de aparentemente ser comum, o relato de vida desses indivíduos é único e, por isso, significativo. Brenda Barbosa, Gustavo Leonel e Vanessa Gonçalves nos ofereceram essa chance: a de escutarmos suas palavras por meio da literatura, identificarmos quem são e entendermos suas transformações por meio da extensão da Unifesp
A escola de Brenda
Do sonho de costureira para mestranda na Unifesp, jovem se dedica a trazer a educação pública e popular de qualidade aos seus pares
(Fotografia: Alex Reipert)
“Lembrar sempre de sonhar, de alargar os horizontes e de agir para que aconteça.” Brenda é assim. Aos 26 anos, faz o que muitos apenas pensam. Sua aparição na Unifesp se inicia na época da graduação, quando não se acreditava que uma jovem negra, da periferia do Grajaú, em São Paulo, poderia cursar o ensino superior, mais ainda em uma universidade pública. Brenda não só se apropriou do espaço educacional, tornando-se uma estudante assídua, mas assumiu o papel de agente transformadora, inspirada em uns e estimulando outros a se envolver em ações coletivas.
Na verdade, tal envolvimento vem de antes. O episódio se deu no ensino fundamental II. Brenda observou que, fora ela, outros coleguinhas de diferentes turmas chegavam cedo na escola e ficavam tediosos até a aula começar. Decidiu levar o problema para a diretora trazendo logo uma solução: liberar os brinquedos do recreio. “Eu me liguei que, além de perceber a situação, é possível mudá-la”.
E lá foi Brenda preencher o resto do dia com atividades extracurriculares, mesmo que não organizadas pela escola. Nesses casos, cabia aos próprios estudantes a organização e execução. Participou dos programas de capacitação para desenvolvimento de projetos sociais – um promovido pela ONG Labor e outro pelo Aprendiz Comgás –, aperfeiçoando movimentos culturais oferecidos pela própria escola, voluntariou-se como monitora da biblioteca, idealizou a formação de um grêmio estudantil para dar continuidade às ações de extensão e, no fim do ensino médio, planejou um grupo de estudos preparatórios para o vestibular. Conseguiu ainda reservar um tempo para uma partida de futebol, levando o time Vai ou Racha – Parte II para a final do campeonato interclasses.
Fato é que não se via a escola sem Brenda. Nem Brenda sem a escola. Mas quem é Brenda Barbosa da Silva? Filha de pernambucanos, a mãe, vendedora de doces, e o pai, laminador. Libriana, caçula da família, tem certa facilidade com trabalhos manuais. Seu desejo na juventude, inclusive, era de ser costureira. Aos 13, para ajudar nas despesas de casa, arranjou um bico na linha de confecção de bolsas de uma fábrica. Cinco centavos por cada arremate. Poderia continuar ali. Preferiu, no entanto, encontrar um emprego formal entregando seu currículo como aprendiz de porta em porta. Num mundo em que a realidade pode limitar os sonhos, o melhor para Brenda era fazer acontecer. E, apesar da rotina exaustiva, não abriu mão dos estudos.
Entendeu só depois que sua vivência foi a chave para o ensino superior. Visualizou que o Serviço Social era a oportunidade de profissionalizar suas iniciativas e colocar outras em prática. Na sequência do diploma de graduação da Unifesp, engatilhou um mestrado na USP Leste. A energia de caloura perdurou durante todo o curso, impulsionando-a a complementar sua formação com projetos de extensão: foi bolsista na tutoria do PET Educação Popular e, dali, fez parte da criação do cursinho pré-vestibular da Baixada Santista, o Cardume, sendo ainda professora voluntária de Redação. Mas Brenda não se deu por satisfeita.
Foi com tal talento sensitivo, somado à característica própria de identificar aspectos inesperados em situações esperadas, que Brenda decidiu fazer um novo mestrado, dessa vez na Unifesp. Ao contribuir com o trabalho de tutora no Projeto de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento, cursinho preparatório para a pós-graduação, notou as dificuldades da primeira turma. Da elaboração do projeto de pesquisa ao modelo hierarquizado do processo de ingresso. O sininho do Serviço Social a despertou para continuar analisando o contexto educacional. “Sem romantizar, tive que apanhar, mas cresci muito. Não acredito que é preciso sofrer para aprender. Por isso, tenho um senso forte de responsabilidade e quero antecipar e colaborar para que novas estratégias possibilitem que outras Brendas apareçam por aí”.
A história de Gustavo
Muito mais do que aprender a partir da realidade do outro, é perceber que também podemos fazer mais por ele
(Fotografia: Alex Reipert)
Você, agora, é chamado pelo nome de Edmond Dantès. E vive em uma prisão, onde há boatos que ninguém conseguiu escapar. Mas sua liberdade e bondade escaparam por suas mãos após ser condenado por um crime que não cometeu. Como lidar com tal destino? Difícil resposta! Talvez você já a sabe. Tem conhecimento do norte que o marinheiro de Alexandre Dumas, em O Conde de Monte Cristo, decidiu se guiar. A literatura nos oferece essa oportunidade, a de navegar por diferentes mares, de chegar a lugares nunca desbravados e aprender. Ok, partiremos para uma outra história, desconhecida, mas possível de ser comum.
Você escolheu ser Derfel Cadarn, mas não o guerreiro leal de rei Arthur, apenas apropriou-se das características do personagem para trazer para os dias atuais. É uma pessoa tímida, monossilábica de vez em quando, calada na maioria das vezes, mas possui um sorriso cativante. Busca refúgio nos livros e na escrita. Gosta de diários. Gosta de pinturas. Admira Monet e Van Gogh e até cogitou cursar Artes na graduação. No entanto, por conta da facilidade com os números, optou por fazer Ciências Contábeis na Unifesp.
Você é um homem trans. A notícia sobre seu ingresso no ensino superior trouxe uma mistura de alegria e preocupação. Sinceramente, mais preocupação. Você não queria frequentar um novo ambiente, ainda mais universitário, pois estava no começo da sua transição. Mas resolveu encarar. Não só uma, nem duas, mas três vezes. Os constrangimentos insistiram em permanecer e os boatos correram soltos. Mesmo mudando de semestre, mesmo mudando de turma, certos colegas não mudaram suas atitudes.
Você não consegue apoio na família. O relacionamento não chega nem perto dos exibidos por comerciais de margarina. Com sua mãe, dialoga só o necessário. Seus irmãos escolhem ignorar sua existência. Já seu pai, distante desde a infância, mal troca uma palavra ou um olhar. Ele, inclusive, tentou expulsar você de casa. A péssima convivência reverbera com os demais parentes, até por aqueles que sente apreço. Contudo, existe ainda quem goste de colocar o papo em dia, que prefere a sua companhia para sair. Seu avô, com 85, é essa exceção.
Você decide, então, enfrentar os desafios por empoderamento. Trabalha e estuda. Sim, voltou a cursar a graduação por uma causa política, para ocupar os espaços em que a população trans é minoria*. Atua em uma startup, uma conquista suada depois de inúmeras entrevistas em outras empresas. A busca por um emprego foi, aliás, uma época complicada, já que estava sofrendo de ansiedade social. A doença foi melhor trabalhada com a ajuda de uma psicóloga do Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais, local que frequenta e se trata desde 2016.
Você é voluntário do Núcleo Trans da Unifesp. O envolvimento se deu logo no início, também em 2016, no fórum de criação, quando sentiu, pela primeira vez, que não estava sozinho. Apesar dos dias corridos, participou das reuniões de desenvolvimento do projeto e contribuiu no planejamento e divulgação de suas atividades. Lá, foi um espaço que possibilitou a você se conhecer e também conviver, não só com estudantes trans, mas diferentes formas de pensamentos e vivências. Sua contribuição foi o caminho para promover novas ações, levando a discussão de gênero e diversidade para todos os campi e para o hospital universitário.
Você é Gustavo Parra Leonel e esse é um breve relato da sua história. “Foi uma montanha russa, com muitos altos e baixos, mas, agora, os loopings cessaram, finalmente! Eu evolui como pessoa, e o fato de ver outras realidades fez eu perceber que posso fazer mais pelos outros, trazer melhores condições para população. Nosso maior desafio é o preconceito, sempre vai haver, mas é por isso que precisamos exercitar, todos os dias, a empatia”, você finaliza.
*De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 0,02% da população de travestis e transexuais estão na universidade.
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Mapa dos assassinatos de travestis e transexuais no Brasil em 2017. Brasília: ANTRA, 2018, 121 p. Relatório disponível em: <https://antrabrasil.files.wordpress.com/2018/02/relatc3b3rio-mapa-dos-assassinatos-2017-antra.pdf>. Acesso em: 20 set. 2019.
Vanessa do Jardim Santa Mônica
Dado o devido valor ao que tinha e não tinha, Vanessa acabou dando valor a si mesma
(Fotografia: Alex Reipert)
O Jardim Santa Mônica poderia ser um bairro igual a todos os outros em São Paulo. Poderia, se não fosse por uma família. Lá dentro há desafios de uma metrópole inteira. É o pedaço da realidade na utopia de uma cidade grande. O protesto à tão gritante e comum desigualdade social. O Jardim Santa Mônica é o lar de uma jovem perspicaz, que a partir das dificuldades encontrou motivos para aprender e transformar. É o lar de Vanessa da Silva Pereira Gonçalves.
Ninguém sabe dizer como foi que a família de Vanessa parou por ali. Fato é que sua mãe saiu de Remanso, interior da Bahia, rumo à capital paulista. Parou em um terreno às margens da Rodovia dos Bandeirantes. Tijolo por tijolo, trabalhando como tecelã, levantou um único cômodo para receber os filhos. Em seguida, os parentes. Com as primeiras moradias, vieram também a água e a luz. Houve momentos em que aparecia alguém da Prefeitura. Em outros, mais tensos, as habitações amanheciam marcadas em vermelho, prontas para serem derrubadas. “Só depois comecei a ter consciência da minha trajetória, que eu venho de uma ocupação e que temos problemas de vulnerabilidade social. Enquanto moradora, não enxergava isso”.
Vanessa apropriou-se dessa vida normalmente. E foi assim que o Jardim Santa Mônica se transformou em um lar. Da simples alvenaria sem reboque nem pintura em contraste com os condomínios residenciais de luxo. Dos escorregas no morro de terra aos córregos a céu aberto para as corriqueiras enchentes. Os problemas, na verdade, encontravam-se no interior de sua casa. Caçula, Vanessa foi fruto de mais um casamento que não deu certo. Sem a presença do pai, aos oito, precisou encarar também a ausência da mãe. Seu falecimento ocorreu de forma abrupta, viajando, durante as primeiras férias do emprego, para a cidade natal. Sem recurso para bancar as passagens dos filhos, as crianças, no fim, mal puderam se despedir. “As datas comemorativas, durante a minha infância, na escola, foram muito difíceis, porque eu não tinha a referência de pai e de mãe”.
Não fosse por querer transformar o mundo, Vanessa seria colecionadora de episódios de superação. Mais velha, com 28, foi vítima de violência doméstica. Tudo começou por ela ter denunciado o irmão por tentativa de homicídio contra sua sobrinha de oito meses. A cunhada já passava por um histórico de agressão, inclusive enquanto estava grávida, e foi a própria Vanessa quem a acompanhou no hospital. Com cara e coragem, sem dinheiro para pagar um advogado, ela levou o caso para Defensoria Pública. A justiça, no entanto, não foi favorável. Vanessa foi obrigada a deixar a sua origem e o seu Jardim Santa Mônica. “E se ele matasse alguém? Eu iria carregar essa culpa! Minha vida desmoronou, mas não me arrependo”.
Vanessa teceu seu futuro com os retalhos da própria experiência. Com o desejo de proporcionar novas perspectivas, garantindo que situações como as que passou não repetissem. “Tudo tem uma motivação e se você quer chegar em um propósito é por meio dos estudos”. Ela se formou em Pedagogia e, na sequência, fez Serviço Social. Inscreveu-se recentemente em uma outra graduação, em Direito. A jovem do Jardim Santa Mônica é a primeira da família a conquistar um diploma no ensino superior e a frequentar uma universidade pública. “‘Faculdade que não pode pôr os pés’ é um trecho da música do Emicida. A gente acredita que esse é um lugar que não nos pertence, para o pobre, preto, de periferia... mas eu sou a prova que conseguimos, sim”.
O que Vanessa não esperava foi que, muito mais que conhecimento, ela pudesse ter clareza sobre seu território. O Jardim Santa Mônica é uma comunidade precária, sem acesso às políticas públicas, sucateada. Tal despertar se deu durante a especialização em Cidades, Planejamento Urbano e Participação Popular, oferecida pelo Instituto das Cidades (IC/Unifesp) - Campus Zona Leste. O curso foi para aperfeiçoar seu trabalho como assistente social, compreender a importância do território. Dito e feito. Dado o devido valor ao que tinha e não tinha, Vanessa acabou dando valor a si mesma. Colecionando episódios de superação, ela ressignificou seu passado e também seu futuro. Talvez seja esse o papel do Jardim Santa Mônica. E talvez por isso que ela busque também por sua transformação. “Nós precisamos modificar nossa realidade. É uma ação de formiguinha, mas se cada um fizer um pouco, juntos, já estamos mudando muita coisa”.
Unifesp 25 anos de inserção na sociedade
Edição 12 • novembro 2019