O mundo já aplicou mais de 7 bilhões de doses contra a covid-19 (Our World in Data, outubro/2021), e certamente, após o fechamento desta edição, esse número terá aumentado significativamente. Um ano após os primeiros casos, 17 projetos de imunizantes nacionais estão sendo desenvolvidos. Um destes está nas mãos de pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
Trata-se do projeto Desenvolvimento de Vacinas para Sars-CoV-2, custeado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). De acordo com Daniela Santoro, imunologista e docente da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo, a demanda surgiu logo no início da pandemia, após a criação do Comitê de Especialistas Rede Vírus - MCTI. A aposta dos pesquisadores é em uma vacina por spray nasal, de baixo custo, que visa estimular uma resposta imunológica mais potente, ativando as células B e T.
“A iniciativa viabilizou um aporte de 9 milhões de reais, por contratação direta, a dois projetos considerados promissores. Um deles é o nosso, liderado pelo docente da USP e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Investigação em Imunologia (INCT-III), Jorge Elias Kalil Filho. O outro é coordenado por Ricardo Gazzinelli, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas (INCT-V).”
Santoro afirma que a pesquisa abre um importante precedente para o desenvolvimento de tecnologia em saúde no país, hoje dependente dos insumos importados para prosseguir na imunização da população. “A pesquisa é uma oportunidade de gerar conhecimento para que, no futuro, o Brasil possa dominar as principais etapas da produção de uma vacina.” Confira a entrevista completa a seguir .
Entreteses • Qual a proposta central do grupo?
Daniela Santoro • Nossa meta é entregar uma vacina 100% brasileira, que induza a resposta imune à covid-19 por duas vias: por meio de anticorpos e células T. Queremos que todo o processo, desde o projeto até o ensaio clínico, seja executado no país. Tenho contato com o professor Kalil Filho há algum tempo, pois ambos trabalhamos na mesma área. Hoje atuo no Laboratório de Vacinas Experimentais (LaVEx), da Unifesp, onde desenvolvo estudos sobre vacinas contra vírus como o HIV, zika e chikungunya; com a pandemia, decidi entrar na corrida pelas vacinas contra o coronavírus. Entretanto, para que a pesquisa pudesse agregar valor ao momento atual e ser competitiva, decidimos adotar uma estratégia diferente das convencionais.
E. Qual a diferença entre a vacina que se propõe a gerar anticorpos e aquela que estimula a produção de células T?
D.S. De modo geral, os anticorpos induzidos pelas vacinas convencionais (contra a febre amarela e o sarampo, por exemplo) são neutralizantes, ou seja, têm o papel de “encobrir” a superfície do vírus que ameaça o organismo, impedindo sua entrada na célula hospedeira. Se algum vírus, porém, escapar dessa frente de defesa, conseguirá adentrar a célula, infectando-a. A partir desse momento, o anticorpo não conseguirá fazer mais nada. Quando o vírus entra na célula, quem defende o organismo é a célula T, que pode tanto estimular a produção de anticorpos quanto, mais importante após a ocorrência, “assassinar” as células invadidas.
E. Como é o processo de elaboração de uma vacina que estimula esse mecanismo do sistema imunológico?
D.S. Estamos estudando a resposta imune dos pacientes que já contraíram a covid-19 a partir de suas amostras de sangue. Uma parte do grupo acompanhou a resposta imune dos anticorpos, e a outra parte estudou a resposta imune celular. Para desenvolver vacinas que estimulam a produção de anticorpos, normalmente são mapeadas as regiões do micro-organismo determinantes para o início da infecção. No coronavírus, o componente mais crítico do vírus é seu invólucro, composto pela proteína spike , que se liga à enzima conversora da angiotensina II (ECA2) das células-alvo. Há um pedacinho dessa proteína, específico, que se encaixa nos receptores das células pulmonares, por exemplo. Esse pedacinho é alvo de anticorpos neutralizantes das vacinas que foram aprovadas e estão em uso (Pfizer, AstraZeneca etc.). A vacina que estamos desenvolvendo terá esse mecanismo (anticorpos), associado à indução de células T, a partir do uso de outros pedaços do vírus – chamados epítopos.
E. Como seria ministrada essa vacina?
D.S. A ideia é que ela seja mais acessível e possa ser ministrada pelas vias nasais.
E. Hoje existe certa polêmica em torno das vacinas que estão sendo ministradas à população, pois surgiram casos de pessoas que se infectaram pelo coronavírus mesmo após receberem uma ou duas doses. É verdade que a vacina não funcionou nesses casos?
D.S. Não é verdade. O principal objetivo das vacinas que estão sendo utilizadas é evitar o desenvolvimento das formas mais graves da covid-19. E esse objetivo está sendo alcançado com sucesso. O indivíduo pode infectar-se pelo vírus, mas não irá para a UTI, e isso é o mais importante.
E. Há também outras discussões que colocam em evidência a desconfiança da população na ciência. Como você vê esses questionamentos?
D.S. É importante a comunidade saber o que a ciência faz. Produzimos há pouco tempo um gibi chamado Dona Ciência, explicando as formas de ação das diferentes vacinas contra a covid-19. Culturalmente, não aprendemos a entender a ciência, e agora surge uma infinidade de informações que, devido a seu volume, é difícil de ser assimilada; então, não é possível separar o que são fake news do que é realmente verdadeiro. O movimento antivacina cresceu de forma absurda nos últimos anos, e isso assustou a comunidade científica, principalmente porque a cultura da vacinação é enraizada entre os brasileiros. Em função disso, a taxa de vacinação caiu bastante, e presenciamos surtos de doenças que há anos não apareciam, como o sarampo. As pessoas passaram a duvidar da eficácia da imunização. O questionamento baseado na curiosidade é extremamente positivo, mas a negação da ciência é seriamente prejudicial.
E. Além de mais uma opção segura para o combate à covid-19, há outro legado propiciado ao país por uma vacina nacional, que é a produção de conhecimento. Qual sua visão sobre isso?
D.S. O Brasil precisa de independência tecnológica, pois estamos vendo, na prática, as dificuldades geradas por ficar à mercê da importação de insumos. Essa é a principal barreira para a vacinação em massa da população. Temos uma fragilidade enorme na produção de tecnologia, e dominar suas etapas será fantástico. Para a covid-19, o feito terá importância inegável, mas, a partir do momento em que dermos o primeiro passo, isso se tornará um grande estímulo para a produção de outras vacinas, de igual relevância para o Brasil. Por exemplo, a malária, leishmaniose e doença de Chagas são enfermidades que acometem nosso país e permanecem negligenciadas.
Especial coronavírus
Despertar para a microbiologia
Com AstraZeneca, Unifesp protagoniza busca pela vacina
Apps gratuitos para facilitar o retorno
“Uma oportunidade ímpar de aprendizado”
Unifesp na linha de frente no combate à covid-19
Edição 14 • novembro 2021