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A jornada do profissional que cuida

Projeto analisa as condições de trabalho da Enfermagem em meio à pandemia

Fotografia de uma profissional de saúde, ela usa face-shield e máscara

Em 2000, a expressão “segunda vítima” foi introduzida no mundo para descrever a experiência do profissional de saúde que se torna emocionalmente abalado por estar envolvido em um incidente que afetou a segurança do paciente. Apesar de a expressão ser relativamente nova, a circunstância é antiga, principalmente no que diz respeito aos aspectos que envolvem a equipe de Enfermagem e suas condições de trabalho, nas quais os processos assistenciais podem estar fragilizados, colocando em risco o paciente e, consequentemente, o profissional.

Em 2020, mais especificamente no dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia do novo coronavírus, chamado de Sars-CoV-2. O número de casos de covid-19, doença provocada pelo vírus, aumentava cada vez mais em diferentes países. Diante da situação, foi editada a Portaria nº 356, de 6 de fevereiro de 2020, do Ministério da Saúde, que estabeleceu medidas para o enfrentamento da emergência em saúde pública de importância internacional.

Numa pandemia, todos os profissionais de saúde tornam-se protagonistas da história, heróis que, mais do que nunca, deparam com a delicadeza da vida. Mudanças na estrutura e nos processos de trabalho das instituições de saúde impactam profundamente o cotidiano, o estado psicológico e o bem-estar desses profissionais. Tudo é novidade no cenário, incluindo os eventuais incidentes. Refletindo sobre tais mudanças e sobre determinados fatores da profissão, a enfermeira Paula Maria Corrêa de Gouveia Araújo, doutoranda em Ciências pela Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (EPE/Unifesp) - Campus São Paulo, desenvolveu um projeto de pesquisa que analisa as estratégias da equipe de Enfermagem no enfrentamento da covid-19.

Motivações

A concepção do projeto advém de uma série de eventos anteriores à pandemia. De acordo com Elena Bohomol, professora associada do Departamento de Administração em Serviços de Saúde e Enfermagem da EPE/Unifesp e orientadora da pesquisa, a proposta inicial era estudar o fenômeno da “segunda e terceira vítimas” nas instituições de saúde, uma vez que tal assunto é ainda pouco abordado no Brasil. “Paula ficou interessada em desenvolver um projeto de doutorado no qual pudesse avaliar o acolhimento das lideranças de Enfermagem em relação aos profissionais envolvidos em situações de erro e eventos adversos que causaram danos aos pacientes”, conta Bohomol. A estudante, que é gestora de Enfermagem no Hospital Santa Marcelina, observava esse fato no próprio local de trabalho. Resolveu, então, explorar suas nuances e entender o que poderia, no caso, ser feito em sua instituição.

Essa iniciativa ganhou força no segundo semestre de 2019, a partir da visita a um grupo de pesquisadores da Universidade Miguel Hernández, em Alicante (Espanha), representados pelo professor José Joaquín Mira Solves. “Na ocasião, conhecemos alguns projetos em desenvolvimento, propostas de atendimento à ‘segunda vítima’ na atenção primária, e conduzimos um acordo de cooperação acadêmica entre a Unifesp e aquela universidade espanhola”, explica a docente.

“Com a pandemia, a instituição em que Paula trabalha tornou-se referência no atendimento ao paciente de covid-19, e muitas coisas tiveram que ser modificadas do ponto de vista da assistência prestada. Naquele momento, o fenômeno da ‘segunda vítima’ deixou de ser uma prioridade de pesquisa nos moldes previamente desenhados”, complementa.

Modificações necessárias

Algumas das mudanças realizadas no mencionado hospital foram: formação de um comitê de crise, definição dos fluxos de entrada de pacientes pelo ambulatório e internação, cancelamento das cirurgias eletivas, mudança no perfil de duas unidades de internação, inauguração de 12 leitos de UTI, aumento do quadro de Enfermagem, promoções internas para as vagas de técnico de Enfermagem e treinamentos ministrados pelo serviço de controle de infecção hospitalar (SCIH), com foco nos equipamentos específicos de proteção individual (EPI) para uso no atendimento de pacientes.

Todas essas modificações na instituição foram destacadas em um relato de experiência elaborado pela doutoranda, denominado Gestão da Enfermagem em Hospital Geral Público Acreditado no Enfrentamento da Pandemia por Covid-19, o qual foi publicado na revista Enfermagem em Foco, do Conselho Federal de Enfermagem.

Segundo Araújo, embora muitas mudanças que priorizavam o atendimento de pacientes tivessem sido implementadas, poucas foram aquelas que recaíram sobre a equipe de atendimento direto.

“Tivemos a preocupação de avaliar como estavam as condições físicas e mentais dos profissionais para a continuidade da prestação do cuidado. Então, pensamos em examinar esse aspecto junto aos profissionais no momento da pandemia”, ressalta.

Com base nessa premissa, notou que os profissionais engajados diretamente na assistência aos pacientes de covid-19 apresentavam alguns sinais (físicos, comportamentais ou emocionais) que poderiam estar relacionados ao estresse e à ansiedade.

A partir dessas observações, o projeto de pesquisa foi elaborado. Após passar pela aprovação do hospital e do Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp, as pesquisadoras ainda estão em busca de recursos. “Submetemos o projeto à Fapesp a fim de solicitar fomento para alguns itens, como a compra de software para análise de dados qualitativos, treinamento para seu uso e serviços de tradução, entre outros. Infelizmente, apesar de o projeto ter sido muitíssimo bem avaliado, os recursos não foram disponibilizados. Vamos continuar tentando, até mesmo junto à iniciativa privada”, relata Bohomol.

Elena Bohomol

Elena Bohomol, professora do Departamento de Administração em Serviços de Saúde e Enfermagem da EPE/Unifesp
(Fotografia: Alex Reipert)

Paula Maria Corrêa de Gouveia Araújo

Paula Maria Corrêa de Gouveia Araújo, doutoranda em Ciências pela Escola Paulista de Enfermagem da Unifesp 
(Fotografia: Alex Reipert)

Passo a passo

Os objetivos do estudo consistiram em descrever a atuação assistencial dos profissionais, analisar as situações estressoras e conhecer as estratégias de enfrentamento relacionadas ao atendimento de pacientes com suspeita de infecção ou cujos testes para covid-19 tivessem sido confirmados. Tratou-se de uma pesquisa qualitativa.

A estratégia metodológica de escolha foi a história oral temática. Vanessa Ribeiro Neves, professora adjunta do Departamento de Administração em Serviços de Saúde e Enfermagem e também pesquisadora do programa de pós-graduação em Enfermagem da EPE/Unifesp, é coorientadora da pesquisa.

A amostra do estudo foi composta por enfermeiros e técnicos de Enfermagem que atuam na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para adultos do Hospital Santa Marcelina, prestando assistência aos pacientes com suspeita de infecção ou cujos testes para covid-19 foram confirmados.

O procedimento para a coleta de dados obedeceu a esta sequência:

  • Envio de e-mail com carta convite para participação do sorteio.

  • Envio de mensagem por WhatsApp.

  • Sorteio.

  • Elaboração do cronograma.

  • Agendamento das entrevistas.

  • Aplicação do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

  • Realização das entrevistas.

As questões norteadoras da entrevista foram:

  • “Descreva como é a sua experiência em atuar como profissional de Enfermagem com pacientes suspeitos ou confirmados para covid-19 nesta instituição.”

  • “Você vivencia situações estressoras nesse atendimento? Quais são? Como lida com elas?”

De acordo com as pesquisadoras responsáveis, os relatos já foram colhidos e, no momento, elas estão trabalhando na análise dos depoimentos para organizá-los segundo o percurso metodológico indicado para esse tipo de pesquisa.

“Estamos trabalhando em um artigo para publicação em um periódico científico, a fim de oferecer uma visão sobre essa experiência”, afirma Araújo. “Os discursos são emocionantes.”

Superação

A pesquisa, segundo as responsáveis, teve como propósito tratar o assunto sob o aspecto da superação – e não do sofrimento –, bem como analisar de que maneira a equipe de Enfermagem trabalhou internamente para prosseguir no atendimento em condições tão ásperas.

“Qualificamos a pesquisa como importante e necessária neste momento, pois estamos falando de uma instituição assistencial que reflete muitas outras no Brasil”, sustenta Bohomol. Segundo ela, aprender como se dá o processo de enfrentamento de situações estressoras pode ajudar os gestores a estabelecerem condições de trabalho mais salutares. E “pode também compor a grade curricular de escolas de ensino superior para que os futuros profissionais saiam com esse conhecimento”, acrescenta.

Os profissionais de saúde são formados para exercer as atividades com prudência e responsabilidade, advogando em nome do paciente e seus familiares, auxiliando-os a participar das decisões que envolvem a saúde do primeiro e educando aqueles que desconhecem os rumos de sua doença ou o impacto do tratamento. “A equipe de Enfermagem tem papel fundamental nisso e, para fazer um bom trabalho, deve ter condições para atuar”, conclui.