Estresse, solidão e raiva foram os sentimentos mais evidentes na população brasileira em 2020. De acordo com os resultados preliminares do projeto internacional Collaborative Outcomes Study on Health and Functioning during Infection Times (COH-FIT), mais de 40% das pessoas sofreram com o aumento expressivo do estresse. O COH-FIT é o mais abrangente estudo a avaliar os impactos da pandemia na saúde global da população, que está sendo aplicado em 150 países, incluindo o Brasil.
A maior parte dos participantes, no país, tinha idade entre 26 e 47 anos. A proporção de mulheres foi maior em relação ao número total de homens, na média mais velhos do que elas. Segundo o estudo, mais de 40% dessas pessoas afirmaram que a sensação de solidão se agravou durante o período, porcentagem idêntica à que representou as pessoas que se perceberam mais ansiosas.
As mulheres foram mais afetadas pela raiva do que os homens, totalizando 50% entre as que sofreram com o agravamento do sentimento, contra 30% dos homens. Por outro lado, elas foram tomadas pelo altruísmo com maior intensidade (25%) do que os homens (10%). A vontade de ajudar o próximo, porém, não se destacou nesse período, não havendo grande diferença entre adultos de meia idade e idosos, cujo percentual, em média, ficou em 20%.
Uma alta proporção dos entrevistados (75%) relatou aumento nas horas gastas com os meios de comunicação. Entre as mulheres, o aumento do tempo on-line foi substancialmente maior (80%) em comparação com o despendido pelos homens. Para 75% dos respondentes, o uso constante das redes sociais amenizou o sentimento de solidão. A pesquisa mostrou que o uso das redes foi adotado como estratégia para enfrentar o período em questão, mas esse recurso não foi o único. Exercitar-se fisicamente, propiciar interações sociais remotas (ao comemorar o aniversário utilizando comunicação por vídeo, por exemplo), voltar a estudar, investir em um parceiro fixo e até adotar um animal de estimação foram as ações mais comuns.
A pesquisa investigou os efeitos do isolamento social associado à covid-19 na saúde física e mental. Os questionários do inquérito que retornaram já somam mais de 4.500 e, no mundo, perfazem cerca de 115 mil. Os dados, contudo, serão coletados até o final de 2021 a fim de captar com maior precisão o cenário compreendido entre o começo da pandemia e seu desenlace, após a vacinação.
Um povo social por natureza
Em São Paulo, Ary Gadelha, professor adjunto do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo, coordena esse trabalho, para o qual contribuem os seguintes profissionais da mesma instituição: Jair Mari, professor titular, Hugo Cogo-Moreira, professor orientador de pós-graduação, Carlos Gustavo Costardi, psiquiatra colaborador, e Laís Fonseca, psiquiatra colaboradora do Programa de Esquizofrenia (Proesq), todos pertencentes ao citado Departamento de Psiquiatria; e Zila Sanchez, professora adjunta do Departamento de Medicina Preventiva. Participam, ainda, do estudo: André Brunoni (Universidade de São Paulo - USP), Felipe Schuch (Universidade Federal de Santa Maria - UFSM) e Samira Valvassori (Universidade do Extremo Sul Catarinense - Unesc).
Ao buscar referências para o trabalho, o pesquisador da Unifesp encontrou materiais que evidenciaram uma tendência natural dos brasileiros à socialização. O fator antropológico explica, em parte, o sentimento de solidão geral entre os entrevistados e a dificuldade de seguir à risca o distanciamento recomendado durante a pandemia. “Identificamos aspectos sociais que se assentaram nas diferentes culturas, ao longo da evolução humana, e percebemos diferenças nítidas entre as culturas mais rígidas e as mais flexíveis. Nas mais rígidas, as pessoas obedecem às regras com maior facilidade, sendo o caso da Alemanha e do Japão. Em outras, como a brasileira, italiana e norte-americana, há muita resistência em seguir as regras impostas”, reflete.
Ary Gadelha
"Somos seres sociais, e a falta de possibilidade de encontro afeta a qualidade da saúde mental. Sentir-se sozinho predispõe a desenvolver diversos casos psiquiátricos. Esse entendimento propicia uma noção melhor sobre o impacto da pandemia.”
Diagnóstico carece de mais informações
Considerando que o inquérito somente terá resultados mais completos em 2022, Gadelha prevê que os resultados referentes a outros grupos devem ainda levantar muitas discussões, como no caso dos profissionais de saúde na linha de frente contra a covid-19, das crianças e adolescentes, das famílias que perderam renda e emprego e dos enlutados pela perda de entes próximos durante a pandemia. Uma das especificidades do trabalho é a comparação do impacto sofrido pelos profissionais de saúde de acordo com o grau de exposição à doença e a natureza da função laboral.
“A pandemia não é só uma pandemia. Ela afeta cada pessoa dentro de um contexto social, cultural e econômico. A identificação desses diferentes contextos é determinante para mensurar a resposta emocional de cada uma das pessoas e grupos. Como teremos um retrato de boa parte dos países, poderemos compreender melhor como as variáveis irão constituir-se em risco (ou mesmo em proteção) para o desenvolvimento de transtornos mentais. Essa capilaridade foi necessária para dados mais próximos da realidade”, explica.
Gadelha pontua que o questionário on-line será incrementado com amostras representativas de dez países, colhidas por uma empresa contratada para essa finalidade. “Uma amostra representativa reflete exatamente o perfil sociodemográfico de uma população de determinado país. A ideia é que possamos traçar perfis epidemiológicos mais fidedignos.” As perguntas do questionário on-line poderão ser respondidas por qualquer pessoa acima de 18 anos, estando relacionadas a mudanças de comportamento durante o isolamento, surgimento de dores e sentimentos de angústia e solidão, entre outros temas.
O COH-FIT é o mais abrangente estudo a avaliar os impactos da pandemia na saúde global da população, que foi aplicado em mais de 150 países, incluindo o Brasil
Família e sociedade
Unifesp na linha de frente no combate à covid-19
Edição 14 • novembro 2021