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O vírus da desigualdade

A experiência de populações vulneráveis em territórios atingidos pela Covid-19 durante a pandemia

Mapa da região metropolitana de São Paulo

"As instruções divulgadas ao longo dos últimos meses, referentes ao isolamento e à higiene pessoal, são recebidas por pessoas que ficam dois dias sem água, moram com sete outras em dois cômodos e dependem do trabalho autônomo para garantir o sustento. A pandemia revelou e amplificou uma desigualdade que já existia, pois as pessoas em situação de vulnerabilidade foram tiradas do silêncio”, avalia Lumena Almeida Castro Furtado, professora adjunta do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo.

A docente coordenou um estudo cuja finalidade foi analisar a experiência de populações vulneráveis em territórios atingidos pela covid-19 durante a pandemia. Os resultados permitem reflexões sobre as diversas pandemias na região metropolitana de São Paulo e Baixada Santista – e principalmente sobre a expressão “diversas pandemias”, que hoje denota as oportunidades desiguais de acesso à saúde, trabalho e cotidiano em uma determinada região.

A pesquisa foi financiada pela Fundação Tide Setubal, que possui convênio com a Unifesp desde 2019 e que, a partir de edital publicado em 2020, garantiu a concessão de um aporte de 160 mil reais ao trabalho. Os 16 territórios que constituíram o campo de estudo estão capilarizados em seis campi da Unifesp.

“O trabalho ocorreu de forma descentralizada. Cada território possuía o seu próprio coletivo, formado por pesquisadores sociais (moradores da região) e representantes dos movimentos sociais com atuação local, além de bolsistas e professores ligados à universidade. Essa configuração permitiu envolver 108 pesquisadores, cujas formações eram distintas entre si – das áreas da saúde, urbanismo, economia, artes e ciências sociais. Uma produção coletiva, que reuniu teoria e prática, mostrando-se como um arranjo positivo para a produção do conhecimento”, explica Furtado.
 

conjunto habitacional popular de Guarulhos

Prédio de conjunto habitacional popular de Guarulhos
(imagem: Maurício Monteiro / Equipe Guarulhos)

Vila Miguel Ignácio Curi

Moradias precárias à margem do rio Verde, em Vila Miguel Ignácio Curi
(imagem: Sandro Oliveira / Equipe do Campus Zona Leste)

muro covid19

De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), 17% da população brasileira não conta com o fornecimento de água. Sem o insumo, atos simples ficam impossibilitados, como lavar as mãos e os alimentos ou limpar a casa – o que agrava a vulnerabilidade ao coronavírus e a outros patógenos
(imagem: Arquivo pessoal)

Não foi possível ficar em casa

Os pesquisadores exploraram muitas dimensões da vivência da pandemia em 16 territórios de grande desigualdade social nas regiões de São Paulo, Diadema, Guarulhos, Osasco e Baixada Santista. Para o estudo, entretanto, esses espaços foram divididos em três grandes grupos – populações domiciliadas em favelas, ocupações e prédios populares; pessoas em situação de rua e com circulação em lugares onde o uso de drogas é abusivo (Cracolândia); e área de classe média.

Foram realizados inquéritos sorológicos em todos esses territórios, utilizando-se a metodologia quantitativa e a qualitativa, centrais no desenho da pesquisa. Os resultados mostraram que quase 64% dos moradores eram pretos ou pardos. No município de São Paulo, essas populações corresponderam a apenas 34% da população total. Outro ponto que se destacou foi o gênero predominante. “Grande parte das pessoas que moram em favelas, aglomerados e conjuntos habitacionais são mulheres, na maioria sozinhas, com os filhos em casa; em muitos casos, os maridos dessas mulheres, presos. Elas, que ganhavam em média dois salários mínimos como diaristas – por exemplo –, tiveram sua renda diminuída durante a pandemia.”

Outros dados evidenciaram um dos maiores dilemas desse período: o “fique em casa.” Mais de 71% dos entrevistados nas cinco regiões precisaram trabalhar fora de casa ao longo de 2020. Mais de 56%, no entanto, não tinham trabalho, 87% tiveram sua renda diminuída e 9,1% não possuíam renda nenhuma. Aproximadamente 23% não conseguiram acesso ao auxílio emergencial, por falta de informação ou por falta de documentação, algo que influenciou os outros números da pesquisa. E, conforme lembra a pesquisadora, uma família sem renda representa uma situação muito grave, pois desenterra um tema superado: a fome.

“Em todos os locais, verificamos o acesso à alimentação e constatamos a substituição de alimentos básicos, como feijão e carne, na medida em que aumentavam os preços desses produtos. Somente no distrito paulistano de Vila São José, onde ocorreu o inquérito nutricional, 79% viviam em situação de insegurança alimentar, sem saber se teriam alimento no dia seguinte para si e seus filhos. Sessenta e dois por cento comeram menos do que gostariam. Mais de 5% estavam com fome. A fome não era mais uma agenda central no Brasil, mas com a pandemia voltou a ser.”

O questionário também avaliou o acesso à rede de esgoto, e a conclusão não foi das melhores. Na região, o acesso à água era descontínuo. Com isso, os moradores conseguiam efetuar a higiene pessoal ou as tarefas domésticas somente em determinado horário do dia. Sem água, atos simples ficam impossibilitados, como lavar as mãos e os alimentos ou limpar a casa – o que agrava a condição de risco. “Essas situações e a linguagem empregada para as informações dificultaram a adesão às ações de prevenção preconizadas. Cerca de 30% tiveram dificuldade em compreender as orientações transmitidas pelo governo e pela mídia.”

Em todos os territórios pesquisados, inclusive no da classe média, foi observada a intensificação do sofrimento mental e psíquico, com referência ao aumento da ansiedade, depressão e medo – da morte, do futuro e de sofrer maior violência. Nos territórios mais vulneráveis a situação era mais sensível, pois tudo foi agravado pela insegurança sobre a garantia da subsistência cotidiana, sobrecarga de tarefas imposta às mulheres e convívio mais intenso – e geralmente forçado – entre moradores da mesma casa, com destaque para as relações conflituosas entre jovens e adultos. “Essa foi uma vivência comum a todos e que precisaria de uma atenção especial de quem formula as políticas públicas”, defende.

A pesquisa indicou, porém, o fortalecimento da rede de solidariedade entre a população. Como esses indivíduos passaram pela mesma vivência, percebiam melhor as dificuldades enfrentadas pelos mais próximos. Entre as ações comuns, podem ser apontadas o cuidado com as crianças durante o período de trabalho dos pais, a ampliação do acesso a alimentos e ao material de prevenção contra o coronavírus e o desenvolvimento de espaços de geração de renda e formação.

A pesquisadora afirma que os dados da investigação podem qualificar o diálogo com o poder público no enfrentamento da situação vivida e dos cenários que se desenvolveram. “Seria possível criar pontos de apoio para auxiliar essas pessoas a tirarem outra via de seus documentos? Abrir restaurantes populares? Investir em hortas comunitárias? As Unidades Básicas de Saúde (UBSs) estariam preparadas para acompanhar a saúde mental desses indivíduos? É evidente a insuficiência de resposta do poder público às necessidades retratadas no estudo, mas as políticas públicas já não consideravam esses setores da população como prioritários. O momento da pandemia escancarou e agravou a enorme desigualdade que já existia”, reflete.

pesquisadores

lambe

Os pesquisadores levantaram as orientações oficiais que a população teve mais dificuldade de compreender, e produziram formas alternativas para disseminar os conteúdos. Um desses meios foi  o lambe-lambe, cartaz composto por textos e imagens, normalmente em preto e branco, que é colado em muros e postes

 

Os corres na Cracolândia

Lumena Almeida Castro Furtado pontua que no bairro da Luz, em São Paulo, um dos territórios avaliados no estudo, o sentimento de vida em risco já fazia parte do cotidiano de seus moradores e foi acentuado com a pandemia. O trabalho autônomo, que ali se expressa, em grande parte, no ato de manguear (pedir) e fazer o corre (vender itens diversos no semáforo ou oferecer serviços), também diminuiu drasticamente. “Essa fonte de renda é de extrema importância para a população avaliada. O ganho médio é de meio salário mínimo, e seus praticantes seguem horários determinados. Com a covid-19, menos pessoas saíram de casa ou tiveram coragem de abrir o vidro de seus carros.”

Com relação à possibilidade de isolamento, no relato dos moradores, os albergues municipais da região representaram, muitas vezes, um risco maior do que a permanência nas ruas. Cada quarto abrigava em média 19 pessoas, não permitindo o distanciamento necessário. Por isso, permanecer nas ruas era um ato de sobrevivência, algo que gerou extensas discussões nas redes sociais. “A insegurança ampliada pelo atual momento, o aumento da violência, o medo da contaminação, a diminuição de uma renda já pequena acentuaram fortemente o sofrimento dessas pessoas.”

 

 

Artigo relacionado:
FURTADO, Lumena A. Castro; FEGADOLLI, Claudia; CHIORO, Arthur; NAKANO, Anderson Kazuo; SILVA, Cristiane Gonçalves da; PAULA, Liana de; SOUZA, Luciana Rosa de; NASSER, Mariana Arantes. Caminhos metodológicos de pesquisa participativa que analisa vivências na pandemia de Covid-19 em populações vulneráveis. Saúde em Debate - Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), Rio de Janeiro, v. 44, n. especial 4, p.306-318, dez. 2020.