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Eles contam como se reinventaram

Projeto de extensão abre espaço para que docentes compartilhem nas redes sociais suas vitórias e obstáculos durante a adaptação ao ensino remoto emergencial

Desenho de um mapa do Brasil em uma parede de azulejos

Se existir uma palavra que possa definir a prática da docência ao longo de 2020, ano em que a pandemia provocou profundas transformações em todos os segmentos – principalmente no da educação –, essa palavra é reinvenção. Abruptamente, escolas de todos os níveis de ensino suspenderam as atividades presenciais, e o ambiente virtual, desde então, passou a ser a única opção para que os docentes seguissem sua valiosa missão de educar e de formar cidadãos. A necessidade de rápida mudança trouxe diversos questionamentos que extrapolaram a relação professor - aluno. Afinal, para além de como fazer, de como praticar a docência, as incertezas também pairavam na relação do educador consigo mesmo, seja na organização de seu novo espaço de trabalho, seja na manutenção da sintonia entre os afazeres domésticos e da escola, por vezes administrando as funções simultaneamente.

A busca por respostas e o interesse em refletir e debater como foi a vivência do educador em sua nova rotina ao longo de 2020 motivaram uma equipe de historiadoras formada por uma docente e quatro bacharéis/estudantes de pós-graduação da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco a mergulhar no projeto de extensão intitulado Reinventar-se: Narrativas Digitais na Docência em 2020. O desafio era compreender e contar a história no tempo em que ela acontecia. Entretanto, a participação intensa de vários docentes no projeto permitiu uma valiosa troca de experiências, além da ativação, geração e compartilhamento de saberes históricos e pedagógicos, construídos à medida que o projeto evoluía.

“Sem dúvida, o isolamento social imposto como medida sanitária de contenção da pandemia acentuou o debate acerca das modificações na docência, da educação infantil à universidade, incluindo o uso das novas tecnologias e abertura de espaço para novas linguagens, alterando práticas escolares e fomentando transformações contemporâneas do ensino. Nesse contexto de repleta reinvenção da docência, nosso grupo buscou estabelecer o lugar de fala para os professores, de modo que eles próprios expressassem as emoções e gargalos experimentados, assim como as oportunidades de expansão de repertório e crescimento profissional”, diz Claudia Moraes de Souza, professora da Eppen/Unifesp e coordenadora do projeto.

Para registrar as memórias e experiências da vida cotidiana docente, o grupo criou uma plataforma na rede social. Em uma página do Facebook, as pesquisadoras convidaram professores a colaborarem com imagens digitalizadas, fotografias digitais, vídeos, arquivos de áudio, textos escritos ou qualquer outro tipo de documento que comprovasse os desafios a eles impostos em tempos de pandemia. Embora as interações acontecessem voluntária e naturalmente, as pesquisadoras estimularam as colaborações lançando na plataforma alguns temas que serviam como gatilho - entre eles, o novo espaço de trabalho docente nas casas, a vida cotidiana e o processo de ensino remoto, os novos materiais didáticos, as tecnologias usadas nas atividades educacionais e os obstáculos a essa adaptação.

“Recebemos centenas de colaborações, dos mais variados formatos, vindas de professores de vários Estados do país, o que permitiu uma riquíssima coletânea de narrativas digitais e uma verdadeira produção de memória coletiva”, destaca a responsável pela iniciativa.

As interações revelaram alguns pontos em comum nesse momento de reinvenção da docência entre os professores que participaram do projeto e nele colaboraram. Ainda que os arquivos mostrassem a diversidade das condições profissionais, era facilmente observada a criatividade geral na adaptação dos espaços, das lousas improvisadas nas paredes até a confecção de materiais didáticos, e na produção de peças audiovisuais, assim como a preocupação com a eficiência e garantia da comunicação entre docentes e discentes. Para a coordenadora, as representações de como o trabalho invadiu o domicílio e vice-versa foram outro fato marcante. “A aparição e participação de filhos e animais domésticos no espaço de trabalho eram constantes nas colaborações dos docentes.”

As contribuições dos docentes foram tão ricas que despertaram interesse também no segmento cultural. Ao ser apresentado durante o congresso científico da área de Antropologia Visual na Universidade Federal do Pará, em novembro do ano passado, o projeto de extensão ganhou visibilidade e recebeu o convite para participar da exposição Narrativas Pandêmicas, organizada pelo Museu da Pessoa. Na visão de Souza, “o convite foi mais uma marca do reconhecimento da importância da narrativa sobre a docência no mundo.”

 

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Diários da Pandemia - Imagens da exposição museudapessoa.org/exposicoes/diarios-da-pandemia

Construção das narrativas digitais

Como parte do projeto, os docentes que colaboraram com interações na plataforma da rede social acompanharam o minicurso História Digital, Memória e Narrativa: Práticas Docentes na Pandemia Covid-19, que tinha como objetivos: debater os usos da história no tempo presente e da história imediata; apresentar as questões da história digital e suas relações com a produção da memória; refletir sobre a produção de narrativas digitais no tempo presente e organizar projeto de trabalho nas Ciências Humanas, voltado às humanidades digitais; e refletir sobre a produção de narrativas digitais no espaço escolar.

“O minicurso foi realizado por 45 docentes, que puderam não só aprofundar a construção de narrativas digitais, como também debater as experiências didáticas e pedagógicas do ensino on-line, apontando para a construção de projetos. O conhecimento adquirido certamente encorajará os docentes a potencializarem esse tipo de recurso em suas atividades pedagógicas, em conjunto com os alunos”, ressalta.

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Entre baldes e backups

Há três meses sua vida transcorria entre baldes e backups. Deu-se conta no momento apressado do encontro.Sábado, no meio de seus afazeres domésticos, entrava uma reunião. Aspirador, chão, pano, vidro, piso, balde... tornaram-se pares constantes em seu dia a dia. Entre aulas: louças. Entre videoconferências: rodos. Entre livros: panelas. Lembrou-se da música cantada na história infantil:
Cinderela, Cinderela, noite e dia, Cinderela. Não para um só momento, mais parece um casamento e ainda gritam: Mais depressa, Cinderela!
Sentiu-se assim! Não ia dar tempo de se arrumar para o baile. Opa! Baile, não. Reunião. Não tinha fada madrinha. Ligou rapidamente o computador. Melhor não ligar a câmera; cumprimentou todos pelo chat.

(Sandra Nunes, professora do ensino superior)

Amplificar a voz dos docentes

Além da plataforma colaborativa e do minicurso, o projeto ainda incluiu um questionário, divulgado nas redes sociais e aplicado aos docentes em atividade remota durante o ano de 2020.

Para as pesquisadoras, o questionário tinha o objetivo de estimular os relatos da prática da docência a distância, de modo a expor o impacto e reflexos na vida pessoal e profissional dos educadores no período de quarentena e de isolamento social como medida sanitária de combate à pandemia.

“Na devolutiva dos questionários, pudemos observar novamente o registro de dificuldades compartilhadas pela maioria dos docentes. A estrutura física, envolvendo, por exemplo, a conexão de internet e os recursos tecnológicos, que – na maioria dos casos – foram próprios, sem terem sido providenciados pela instituição de ensino, foi algo colocado como muito desafiador. O descontrole da rotina, com a ausência de uma definição clara de horário para as atividades pedagógicas e de horário para os afazeres pessoais, também apareceu na maioria das respostas dos docentes”, descreve Souza.

O exercício da docência na modalidade a distância e a falta de participação dos alunos nas atividades, seja por problemas de acesso à internet, seja pela ausência de motivação ou até mesmo pela carência de envolvimento dos pais, foram outros fatores destacados nas respostas ao questionário. Para a coordenadora do projeto, “essas informações revelam o período conturbado pelo qual os docentes passaram, de muita angústia, ansiedade e certo descontentamento, enquanto buscavam se reinventar para dar sequência às suas rotinas pedagógicas.”

Se, de um lado, o questionário indicou os pontos negativos, de outro, revelou às pesquisadoras fatores positivos, promovidos justamente por essa reinvenção - entre eles, a aprendizagem de novos recursos, como plataformas digitais, e a produção de conteúdo para as aulas remotas, itens que poderão ser aproveitados quando tudo isso fizer parte de uma história passada. Trata-se da aquisição de conhecimento, como resultado da adaptação, que gera oportunidade de crescimento profissional.

“Sem dúvida, o projeto pôde mostrar, por meio da experiência da história pública e digital, a pluralidade de vozes e o compartilhamento de vivências e reflexões, fundamentais na interseção de saberes e práticas pedagógicas no campo das tecnologias comunicacionais e na visibilidade que a experiência do trabalho remoto atribuiu ao conhecimento histórico e ao uso das tecnologias nas humanidades. Mais além, com as narrativas da docência, pudemos contribuir para a escrita da história, no tempo em que ela acontecia”, conclui Souza.

Claudia Moraes de Souza

Claudia Moraes de Souza, professora da Eppen/Unifesp e coordenadora do projeto