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Sons da reintegração

Exploração do universo musical afeta percepções subjetivas e pode trazer o real sentido de viver em família

Imagem de uma partitura musical

Dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), vinculado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), indicam que cerca de 8.400 crianças e adolescentes estão cadastradas no banco de dados do órgão para adoção. Antes do processo de adoção, no entanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) indica que é necessária a tentativa de reintegração familiar, ou seja, tentar reatar os laços com a família de origem, pai e mãe, ou com a família extensa, como tios e avós.

Entretanto, de que forma uma família na qual os filhos estão separados dos pais por algum motivo poderia ser novamente reestruturada? Foi esse o foco da tese de doutorado de Ana Paula Cascarani, defendida na Escola Paulista de Enfermagem (EPE/Unifesp) - Campus São Paulo, sob orientação de Ana Lucia de Moraes Horta.

Inicialmente, Cascarani pretendia desenvolver sua tese voltada para a adoção internacional de crianças, tema com o qual já trabalhava. “Fui convidada para fazer um trabalho com crianças brasileiras que seriam adotadas por franceses. E como eles não falavam a mesma língua e por eu ter uma formação em Musicoterapia, utilizei a música nesse processo do estágio de convivência, por achar que seria um recurso muito interessante para propiciar confiança e abrir canal de comunicação entre eles”.

No entanto, outro convite, feito pela equipe do abrigo no qual estavam essas crianças, a fez mudar de ideia. “Estava convicta em fazer uma tese sobre adoção internacional e a psicóloga do abrigo veio com uma contraproposta para estudar reintegração familiar, por ser a primeira condição, segundo o ECA, para conviver em família”, explica.

Dessa forma, já participaram do estudo três famílias em processo de reintegração e uma família pós reintegrada, com crianças vítimas de maus tratos e abandono. As estratégias utilizadas para a coleta dos dados foram a observação participante, a entrevista mediada pelo fazer musical e a entrevista semiestruturada realizada também com a psicóloga da instituição, na qualidade de informante da experiência. A pesquisa foi elaborada a partir das premissas do Interacionismo Simbólico e dos pressupostos analíticos da Teoria Fundamentada nos Dados buscando a construção de um modelo teórico.

Por que o fazer musical?

Cascarani explica que a música e o som projetados nos instrumentos musicais podem expressar algo desconhecido e algo mais do que o indivíduo quer dizer. “O instrumento musical pode ser considerado um material projetivo, um prolongamento do corpo, que, ao ser tocado por alguém, ganha vida. A junção da sonoridade do instrumento com a musicalidade do indivíduo compõe uma nova obra”. O resultado, no entanto, não costuma ser o de uma música conhecida ou uma trilha musicoterapia 74 Unifesp EntreTesesjulho 2018 sonora programada. “É uma musicalidade que vai se formando na hora, naquele momento, fazendo com que a comunicação, a criatividade e a interação aconteçam de forma natural e espontânea”, completa.

A experiência com as famílias

Durante a pesquisa, foram entrevistadas quatro famílias indicadas pela instituição, situada na Zona Sul de São Paulo, na qual as crianças estavam abrigadas. Devido à impossibilidade ética de identificação dos nomes das pessoas entrevistadas, a pesquisadora as nomeou da seguinte forma: Família Clave de Sol, formada pela tia, que é irmã do pai, e por três crianças; Família Clave de Fá, composta pela mãe e por sete crianças; Família Clave de Dó, da qual participaram o pai, sua namorada e o filho; Família Pentagrama, já reintegrada, da qual foram entrevistados a avó materna, o tio, irmão biológico da mãe, além de duas crianças.

Nas entrevistas, Cascarani utilizou instrumentos de percussão, como tambor e pandeiro, e outros harmônicos e melódicos, como violão e teclado, que, na sua avaliação, chamariam menos a atenção das crianças. Entretanto, a pesquisadora se surpreendeu ao ver que alguns dos entrevistados optaram por usar os harmônicos. “Os instrumentos musicais de percussão levam o indivíduo a acompanhar uma música que já esteja sendo tocada por meio das ‘batidas das mãos’, enquanto que o violão e o teclado requerem que o indivíduo toque ‘corretamente’ para ser compreendido por todos, porque irá liderar um movimento e convidar os demais para acompanhá-lo”, diz. Ela explica que, por serem instrumentos mais complexos, a pessoa sente uma necessidade de ‘tocar bonito’. “Isso é natural e importante, porque a busca pela manifestação da estética pode revelar crenças, valores e aspectos culturais, porém, quando utilizamos a expressão musical para ampliar a comunicação e interação, o foco está na manifestação da energia de vida, do movimento, da criação de conceitos a partir da experiência e não no 'tocar bonito'", completa.

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Ana Paula Cascarani, autora da pesquisa

Ao longo das entrevistas, Cascarani percebeu, por meio dos sons emitidos pelos instrumentos de percussão, a ideia de algo em construção. “Começaram a pegar os instrumentos e bater como se fossem um martelo e a família toda acompanhou, como se fosse uma obra”. O que a surpreendeu, no entanto, foram as músicas escolhidas ao apertarem os botões do teclado que reproduzem sons que estavam salvos na memória. “Não induzi a nada. Eles apertaram o botão e disseram: É essa! E escolheram canções como Noite Feliz e Torre de Londres, enquanto na percussão eles faziam um pulso como se fosse uma construção”.

Em outras duas famílias, foram escolhidas a Marcha Nupcial, Noite Feliz, La Cucaracha e canções de ninar. A pesquisadora explica que esse fato traz à tona o que as famílias sofreram antes e durante o processo de reintegração e suas expectativas. “O abandono não é só da criança, mas envolve todo o sistema familiar, além de ser recursivo”, pontua.

Ao final dos encontros, Cascarani convidou as famílias para compor o tema de cada uma delas, com suas próprias palavras e escolhendo seus ritmos de preferência. Três delas compuseram funk e a outra um rap. “A composição vem e fecha com um ideal, uma expectativa: sair dali, formar uma família sólida no ponto de vista deles. E o que precisa para ser sólida? Precisa ter mais churrasco, precisa ter salada... a fome, a comida, a promessa de que ninguém vai apanhar... tudo isso veio nas letras das músicas”, ressalta ela.

Por fim, Cascarani conclui que, para as famílias entrevistadas, o desejo de “ser” surge como um ideal. "Quando perguntei a eles o que significava ‘estar em família’, eles disseram que é ter festa, ganhar presente, muita alegria e felicidade, casa grande e bonita. Ou seja, na experiência deles, parece que para ‘estar em família' é preciso ‘ter’ e ‘ser’ e se tem e do que se é. Eu fiquei com uma curiosidade, talvez para um próximo trabalho, de compreender se há diferença entre o ‘estar presente’ e o ‘ser presença’ e qual desses é necessário na experiência deles, para se chegar no ideal de ser a ‘família Doriana’”, finaliza.


Tese relacionada:

CASCARANI, Ana Paula. Tentando reconstruir o que foi quebrado: a família compondo a trilha sonora de seu processo de reintegração. 2015. 121f. Tese (Doutorado em Ciências) - Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo. São Paulo. 2015.

Artigo Relacionado:

CASCARANI, Ana Paula. Família compondo a trilha sonora de seu processo de reintegração: modelo teórico. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 71, n. 3, jun. 2018. Disponível em: www.scielo.br/pdf/reben/v715s3/pt_0034-7167-reben-71-s3-1298.pdf. Acesso em: 22 jun. 2018