É alarmante a atual situação das águas brasileiras, cada vez mais intoxicadas por poluentes, como produtos químicos e farmacêuticos. Objeto de análise de pesquisadores no Instituto do Mar (IMar/Unifesp) - Campus Baixada Santista, os fármacos encontrados nas águas da Baía de Santos, litoral de São Paulo, já causam sérios danos à biota marinha.
Ao lado de outros pesquisadores, o ecotoxicologista Camilo Seabra faz um monitoramento das águas da região desde 2014, mais precisamente em cinco pontos próximos ao Emissário Submarino de Santos, instalado em 1978 com o objetivo de difundir, em alto mar, o material tratado pela estação de esgoto da região. O estudo inédito identificou grande presença de anti-inflamatórios, anti-hipertensivos e analgésicos, somando 32 fármacos, com destaque para o ibuprofeno, paracetamol, losartan, valsartan e diclofenaco. Até mesmo a cocaína e seu metabólito benzoilecgonina, que seria a substância transformada pelo fígado, assim como a cafeína, presente nos medicamentos, foram identificadas em todas as amostras e em concentrações semelhantes às dos fármacos.
Pesquisadora do Departamento de Ciências do Mar do IMar/Unifesp, Mayana Karoline Fontes é a autora de uma dissertação de mestrado, orientada por Seabra, que analisou especificamente o risco ambiental do diclofenaco em ambientes marinhos. Fontes explica que o diclofenaco é um dos medicamentos anti-inflamatórios mais consumidos do mundo e que, em 2013, a substância passou a ser muito citada nas políticas direcionadas às águas da União Europeia, o que demonstra grande preocupação em relação à presença dessa substância nos ecossistemas aquáticos. Os nomes comerciais mais comuns desse fármaco são: Cataflam, Voltaren, Cambia, Diclac e Zorvolex.
Para realizar a pesquisa, foram selecionadas as concentrações detectadas na água da Baía de Santos. Os mexilhões utilizados foram adquiridos em cultivo e testados em laboratório, comprovando terem boa qualidade ambiental, para evitar possíveis interferências no experimento. Os moluscos foram expostos em aquários preenchidos com água do mar e diferentes concentrações de diclofenaco durante um período de 96h, com troca de água e do fármaco a cada 24h.
Após esse período, a etapa seguinte do estudo consistiu na retirada dos tecidos das brânquias e das glândulas digestivas dos organismos em questão. A análise do efeito do fármaco nos mexilhões foi embasada na verificação de parâmetros bioquímicos e celulares, como informações do DNA, atividades de enzimas de detoxificação - que retiram substâncias potencialmente tóxicas de dentro do organismo - e estabilidade de membranas.
Segundo Fontes, os resultados apontam um cenário preocupante. “Nossos resultados demonstram que o diclofenaco pode causar importantes alterações em organismos expostos, tais como alterações em enzimas responsáveis pela biotransformação do fármaco, danos ao DNA e estresse fisiológico”, pontua. A alta concentração de diclofenaco nas águas também alterou os níveis de cicloxigenase, proteína que desempenha papel essencial no processo inflamatório. “Esses resultados são inéditos para espécies marinhas e demonstram um mecanismo de ação parecido com o reportado para outros modelos toxicológicos”, complementa a pesquisadora.
De acordo com ela, regiões litorâneas, como a Baixada Santista, são particularmente afetadas por essa contaminação porque os efluentes captados e lançados em alto mar pelos emissários não passam por um tratamento de esgoto adequado, capaz de retirar substâncias bioativas que possam deteriorar organismos marinhos. Fontes ainda comenta que não há um parâmetro legal que determina uma concentração segura de fármacos nos ecossistemas, já que a legislação ambiental do Brasil não contempla o monitoramento de produtos farmacêuticos e seus metabólitos em ambientes aquáticos, sejam eles formados por água doce ou salina.
Além da falta de tratamento adequado do esgoto, a conscientização da população é importante para que se interrompa o descarte inadequado dos fármacos vencidos ou fora de uso, que contribuem para o aumento das concentrações ambientais quando jogados em vasos sanitários e pias. “Melhorias nos sistemas de tratamento de esgoto e o descarte correto de fármacos em seus respectivos pontos de coleta colaborariam para a redução das concentrações do diclofenaco no ambiente marinho, e, consequentemente, os efeitos dessa classe de contaminantes de preocupação emergente seriam diminuídos”, enfatiza a pesquisadora.
Apesar do estudo em questão não abordar os impactos da presença dos fármacos nas águas para a saúde humana, em entrevista à edição anterior da Entreteses, Camilo Seabra já havia apontado que a automedicação e a medicamentação excessiva são fatores importantes a serem discutidos. Na ocasião, o orientador da dissertação afirmou que o uso e descarte irresponsável de fármacos pelos seres humanos podem prejudicá-los de outras formas. “O mais alarmante é que esses efeitos (dos fármacos) têm sido observados em concentrações já detectadas em ambientes aquáticos, denotando risco ecológico. Além disso, ao acumularem essas substâncias em seus organismos, os animais marinhos podem servir como via de contaminação e intoxicação de seres humanos, especialmente comunidades tradicionais que consomem grandes quantidades de pescado em sua dieta”, explicou o pesquisador.
MEDICAMENTO DE BAIXO CUSTO CONTAMINA O MEXILHÃO
“No Brasil, o diclofenaco é um medicamento de baixo custo e pode ser obtido facilmente nas farmácias sem a necessidade de receituário. A ocorrência desse fármaco em organismos vem sendo profundamente estudada em ambientes aquáticos de água doce, como rios e lagos, mas dados sobre a ocorrência dessa substância em ambientes marinhos são extremamente limitados”, afirma a pesquisadora Mayana Karoline Fontes. O trabalho em questão representa um dos primeiros estudos a reportar a ocorrência e efeitos do fármaco em organismos que habitam ambientes marinhos tropicais.
A alta quantidade de medicação chega às águas por meio do consumo humano e reflete um uso excessivo da substância, o descarte inadequado por parte da população e a falta de tratamento do esgoto, no caso, despejado pelo Emissário Submarino de Santos em alto-mar.
A espécie escolhida para ser estudada foi o mexilhão Perna perna, um molusco que possui grande distribuição no litoral brasileiro.
O mexilhão é uma importante fonte de alimento e renda para as comunidades litorâneas e foi escolhido como objeto do estudo em razão de suas características. “O Perna perna é um organismo séssil, ou seja, não se movimenta, é de fácil manipulação e manutenção no laboratório. Além disso, como se trata de um molusco filtrador, ele está constantemente exposto a diversos contaminantes presentes no ambiente marinho, tais como os produtos farmacêuticos, com potencial para bioacumular e sofrer efeitos adversos”, comenta a autora da dissertação. O processo de bioacumulação consiste no acúmulo de substâncias nos tecidos dos organismos, sendo comumente decorrente da ingestão das substâncias presentes no ambiente.
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FONTES, Mayana Karoline; GUSSO-CHOUERI, Paloma Kachel; MARANHO, Luciane Alves; ABESSA, Denis Moledo de Souza; MAZUR, Wesley Almeida; CAMPOS, Bruno Galvão de; GUIMARÃES, Luciana Lopes; TOLEDO, Marcos Sergio de; LEBRE, Daniel; MARQUES, Joyce Rodrigues; FELICIO, Andreia Arantes; CESAR, Augusto; ALMEIDA, Eduardo Alves; PEREIRA, Camilo Dias Seabra. A tiered approach to assess effects of diclofenac on the brown mussel Perna perna: a contribution to characterize the hazard. Water Research, v. 132, p. 361-370, abr. 2018. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29353198>. Acesso em: 12 jun. 2018.
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