Após décadas de crescimento econômico quase contínuo da economia global, estamos vivendo dias de uma situação ímpar, tanto aqui no Brasil como no restante do mundo. Muitos setores parados, ruas (quase) vazias, trabalhadores em casa, consumo limitado aos bens mais essenciais. As projeções do FMI (World Economic Outlook) para 2020, divulgadas em 14/04, já indicam uma recessão global de 3% na economia mundial e de 5,3% na brasileira. Mas, como sabemos, estes são apenas indicativos e os números reais que se revelam após o exame da realidade geralmente acabam por se diferenciar muito. Isso em dias e situações normais. No cenário atual, a perspectiva de erro nestas projeções é ainda muito maior.
No caso brasileiro, algumas considerações iniciais precisam ser postas à mesa. Mesmo antes da explosão da crise, ou da melhor percepção da gravidade da epidemia que se anunciava (mas que poderia nem chegar aqui, como foi o caso da H1N1 em 2009), o cenário brasileiro já era pouco auspicioso. Em fevereiro, o IBGE anunciou que o PIB do ano passado havia crescido apenas 1,1%, muito abaixo das projeções do início de 2019, quando se imaginava que a economia poderia crescer próximo aos 2,5%. E as perspectivas para 2020 já não eram boas. Vários fatores podem explicar tal resultado tão pífio, mas talvez o mais expressivo deles seja a baixa confiança dos agentes econômicos - internos e externos - na condução da economia brasileira. Apesar da obtenção das tão aguardadas reformas demandadas pelo mercado (previdenciária, principalmente), que poderiam prenunciar uma melhora das contas públicas no médio/longo prazo, elas já se mostravam insuficientes para uma efetiva retomada dos investimentos no Brasil. Os sinais já eram inequívocos: uma direção política tresloucada, sem base consistente de sustentação no congresso, conflitos infames e infantis no setor externo com grandes potências, profundo desprezo pelas questões ambientais, educação, cultura e saúde, além de uma absoluta falta de ações para se criar um ambiente econômico que pudesse minimizar o crescente desemprego no país, mascarado pela imensa quantidade de trabalhadores informais. Percebida a gravidade da crise da saúde, tal "modelo" de direção político e institucional não mudou em nada e os conflitos passaram a se dar até mesmo dentro do corpo do governo federal.
Se a proposta inicial, e única, do Ministério da Economia era a de dar maior "previsibilidade" para a evolução das contas públicas, o espocar da pandemia e toda a gama de gastos exigida acabaram por minar o pouco da objetividade que ela ainda possuía. O que caracteriza hoje a política econômica do Brasil? Se ela já não era em si suficiente (muito menos eficiente, dada a situação política), o esforço fiscal para tentar minimizar os impactos da crise acabou por deitar por terra qualquer expectativa do orçamento equilibrado e, por conta disso, de objetivos de política econômica. A flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal, por conta do estado de calamidade, ensejou a instituição do chamado "Orçamento de Guerra", que deve ser contabilizado em separado, mas a queda da arrecadação em todos os níveis da federação advinda da paralisação prenuncia uma aguda piora das contas públicas. Com tudo isso, o custo fiscal dos recursos demandados para o combate aos efeitos da pandemia deve superar os 7% do PIB neste ano, quando já se trabalhava com um déficit primário de 0,3% do PIB. Não se trata de menosprezar a importância do equilíbrio das contas públicas; afinal, não adianta simplesmente gastar a esmo para resolver os problemas socioeconômicos do país, mas, para reativar a dinâmica econômica, é preciso também ter uma maior clareza conquanto aos objetivos reais de uma política econômica, se voltada a uma "justiça do mercado" ou a uma "justiça social", tão demandada pela enorme massa de pessoas vivendo em condições de pobreza e miséria, agora tornadas mais do que evidentes pela pandemia do coronavírus.
Não sabemos ainda a extensão e duração desta pandemia, muitos menos o nível de perdas que ela deverá trazer consigo; se ela poderá durar mais algumas semanas ou alguns meses e em quais condições a economia poderá novamente tentar voltar à "normalidade", mas já é mais do que certo que será uma crise econômica de proporções históricas, com uma recessão que poderá até superar os sombrios prognósticos do FMI. O risco da depressão evoluir para uma depressão econômica, como já aventada por alguns analistas, existe, mas a experiência passada nos mostra que existem ferramentas econômicas para evitá-la.
Uma crise de tal proporção não deveria ensejar simplesmente a volta ao cenário anterior e para isso devemos tentar tirar dela alguns aprendizados e reflexões para que esse novo cenário "normal" possa ser também auspicioso, no qual possamos caminhar para alguma direção, com algum sentido. Nesse sentido, podíamos atentar para dois aspectos: um mais pragmático e curto prazista, de recondução ao equilíbrio seguindo (ou perturbando) alguns ditames macroeconômicos; e outro, de caráter mais estrutural (quase filosófico) conquanto à necessidade de uma maior atenção a alguns aspectos essenciais da vida, elencando alguns pontos para os quais precisamos atentar sobre a verdadeira economia (do grego oikosnomia, administração da casa).
No aspecto mais pragmático, parece claro que a retomada dependerá de uma ampliação do peso do Estado na economia, com aumento do investimento público – o que vai frontalmente contra o modelo liberal do Estado mínimo do Ministério da Economia –, que demandará efetiva participação dos bancos públicos, bem como um aumento de liquidez coordenado pelo Banco Central (não se trata de simplesmente fabricar dinheiro e despejar no mercado). Uma iniciativa desse porte colide também com a Lei do Teto de Gastos, mas os indicadores de finanças públicas deverão piorar no curto prazo e isso já é inescapável. Efetuar privatizações para fazer caixa em momento de baixa não parece ser uma boa resolução de mercado. Mas, mudanças na direção do regime tributário, altamente regressivo, seriam bem-vindas e poderiam contribuir para as contas públicas, bem como uma revisão dos chamados gastos tributários, benefícios e isenções a alguns segmentos que somaram aproximadamente R$ 370 bilhões apenas em 2019. Existem mecanismos econômicos para o enfrentamento desta crise imediata.
A saída para a recessão é, evidentemente, mais crescimento econômico. Uma lição forte da pandemia, porém, tem sido o questionamento do modo como estamos vivendo. O crescimento econômico é desejado e incessantemente fomentado, mas o benefício e a riqueza gerada e dele advindos – e a história e a realidade atual estão nos mostrando de forma escancarada –, são extremamente mal divididos. E isso tudo, com a destruição dos fundamentos de sustentação natural do planeta, tudo para a reprodução do modelo de produção para o consumo exacerbado, que estimula a proliferação rápida de vírus que poderiam ficar circunscritos a pequenas áreas, com pequenos efeitos. Estamos, a duras penas, aprendendo a viver com menos e muitos até mesmo parando para pensar no que é realmente importante em nossas vidas. Precisamos urgentemente aprender a realmente administrar melhor a nossa casa e isso precisa fazer parte do receituário econômico.
*Economista, professor da Universidade Federal de S. Paulo (Unifesp) e autor de O Capital Suicida - Racionalidade Ambiental, Autointeresse e Cooperação no Século XXI (Poligrafia Editora, 2019)
As opiniões expressas neste artigo não representam a posição oficial da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)