Um estudo inédito, conduzido por uma equipe de pesquisadores(as) brasileiros(as), sob orientação do professor André Casas, do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (IMar/Unifesp) - Campus Baixada Santista, realizou a descrição e documentação anatômica inédita de um cachalote-pigmeu (Kogia breviceps), um dos menores membros da ordem dos cetáceos com dentes. Pouco avistado em vida, esse animal raramente oferece aos(às) cientistas a chance de estudá-lo de perto.
No dia 11 de julho de 2000, no entanto, uma cachalote-pigmeu, com 288 cm de comprimento total, foi levada para a costa na cidade de Santos. Era uma fêmea que carregava um feto grande, o qual foi removido da carcaça. A necropsia revelou que a provável causa da morte da fêmea foi afogamento, uma fatalidade que custou a vida de dois espécimes raros. A mãe foi enterrada e seus ossos posteriormente recuperados. Tanto ela quanto o feto foram preservados no acervo do Museu do Instituto de Pesca de Santos (MIPS), até que o feto fosse doado à Unifesp.
Por meio do estudo, foi possível, pela primeira vez, prosseguir com a descrição e documentação anatômica de um cachalote-pigmeu durante seu estágio final de desenvolvimento fetal, por meio da tecnologia de tomografia computadorizada, testando sua viabilidade como uma ferramenta importante para estabelecer a idade, o grau de desenvolvimento da estrutura anatômica e as variações em relação a descrições anteriores de adultos.
O artigo resultante deste trabalho – Anatomical description of a pygmy sperm whale, Kogia breviceps (Cetacea: Kogiidae), pre‐term calf using CT scan and 3D reconstructions – foi publicado na versão on-line da revista científica The Anatomical Record, importante periódico internacional de Anatomia. Devido à sua relevância, o artigo também estará na versão impressa do periódico, inclusive com destaque na capa.
A Kogia breviceps, também conhecida como baleia-anã ou cachalote-pigmeu, mede em média de 2,5 a 3,5 metros de comprimento e possui características que a diferenciam drasticamente de outros cetáceos, inclusive do seu parente próximo, o cachalote. Apesar de o nome comum sugerir um vínculo com baleias verdadeiras, a Kogia pertence à subordem Odontoceti, o grupo dos cetáceos com dentes.
No Brasil, registros dessa espécie são esparsos, concentrando-se geralmente em casos de encalhes. "É um animal que vive longe da costa e raramente é avistado vivo. Os encalhes são, infelizmente, as únicas oportunidades que temos de estudar essa espécie de perto", explica Lara Bennati-Madureira, uma das autoras do artigo, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Ecologia Marinha e Costeira (PPGBEMC), da Unifesp.
Detalhes
O animal estudado apresentava boas condições corpóreas, sem sinais evidentes de trauma. Segundo os(as) pesquisadores(as), o estado de conservação permitiu uma investigação detalhada dos sistemas musculoesquelético, digestivo e reprodutivo, revelando tanto características conhecidas da espécie quanto algumas peculiaridades.
“A carcaça da mãe do espécime estudado foi encontrada fresca, condição referida como COD2 pelos institutos de monitoramento. Carcaças COD2 indicam morte recente, e preservam todas as características do corpo do animal ainda vivo”, explica Casas. O docente conta que, graças ao estado de preservação da carcaça, o espécime fetal também foi preservado. “Não é incomum que estes animais encalhem vivos e morram brevemente após o encalhe, o que auxilia na recuperação de carcaças frescas.”
Uma das observações mais marcantes foi a morfologia dos músculos peitorais e do pedúnculo caudal. A musculatura robusta sugere adaptações para mergulhos profundos e natação eficiente — habilidades indispensáveis para uma espécie que se alimenta principalmente de lulas e outros cefalópodes, encontrados em grandes profundidades. O estômago revelou conteúdo alimentar parcialmente digerido, incluindo restos de cefalópodes, confirmando os hábitos alimentares conhecidos da espécie. O trato digestivo completo também foi documentado, com detalhes sobre os compartimentos estomacais e o intestino.
Outro destaque foi a descrição do aparelho reprodutor masculino, ainda em estágio juvenil, mas com estrutura compatível com o desenvolvimento esperado da idade estimada. “Diversas características anatômicas levantadas no nosso estudo reforçam a estimativa de que o espécime é um feto pré-termo, como os níveis de ossificação do crânio e coluna vertebral e a topografia esquelética e esplâncnica do animal”, diz a doutoranda.
Além disso, o sistema respiratório e as vias aéreas superiores foram analisados, incluindo a traqueia e o melão — estrutura característica de odontocetos usada para ecolocalização.
Importância científica
Esses dados somam-se a um campo ainda modesto de literatura sobre Kogia breviceps. Segundo os(as) autores(as), há poucos estudos com foco exclusivamente anatômico sobre a espécie, especialmente envolvendo espécimes tão bem conservados. O relato oferece informações que podem apoiar futuras pesquisas em anatomia comparativa, taxonomia e conservação.
“Nosso trabalho consiste na primeira descrição anatômica completa de um feto de Kogia breviceps, entretanto, foi possível notar algumas diferenças entre a morfologia do espécime fetal e de espécimes adultos, principalmente em relação à forma do corpo, do esqueleto e dos órgãos internos, sendo muito mais compacta do que nos adultos”, esclarece Lara. A pesquisadora também disse que, devido ao número limitado de estudos sobre a anatomia fetal interna da espécie, não foi possível realizar estudos de natureza comparativa complexa, não sendo possível observar variações relacionadas ao sexo ou localização geográfica dos animais.
“A descrição anatômica de indivíduos encalhados é essencial para ampliar nosso conhecimento sobre espécies difíceis de serem estudadas em seu ambiente natural”, destaca o artigo. Para uma espécie como o cachalote-pigmeu, cada novo dado pode ser uma peça-chave no quebra-cabeça da biodiversidade marinha.
O estudo destaca a importância de métodos não invasivos na biologia marinha, permitindo a análise detalhada de espécimes raros sem causar danos. Os achados fornecem uma base para futuros estudos comparativos e podem auxiliar na conservação e manejo da espécie. “A aplicação de tomografia computadorizada e reconstruções 3D nos permitiu explorar aspectos morfológicos que antes eram inacessíveis, abrindo novas possibilidades para pesquisas futuras e esforços de conservação", completa Casas.