Na edição n° 8 da revista Entreteses, foi mencionado estudo da Unifesp que apontou os malefícios da privação materna nos primeiros anos de vida, como ansiedade, indícios precursores da esquizofrenia, perda de peso e maior consumo de sacarose. Diversos pesquisadores da área de Psicobiologia passaram a avaliar a fundo a questão a partir da década de 1990, especialmente após o grupo liderado pelo neurocientista Bart Ellenbroek descobrir que, quando o afastamento da mãe ocorre no nono dia pós-natal, os testes comportamentais no rato adulto evidenciaram transtornos semelhantes à esquizofrenia. Amanda Centenaro, aluna do 3° ano de graduação em Biomedicina no Centro Universitário São Camilo e voluntária do programa de Iniciação Científica na Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo, de igual modo, está avaliando os possíveis efeitos do afastamento entre a prole e a progenitora no nono dia pós-natal. Sua observação considerará os dados coletados, que associam as influências desse fator estressor a alterações neurobiológicas e ao comportamento social desses indivíduos nos anos posteriores.
Qual o motivo de a privação materna ser um modelo para o estudo dos transtornos do neurodesenvolvimento? Carlos Girardi, orientador de Centenaro e docente do Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp, esclarece que principalmente o autismo e a esquizofrenia sofrem grande influência do ambiente em que ocorre o desenvolvimento inicial do indivíduo. “Alterações no curso do desenvolvimento durante a formação e maturação do sistema nervoso central (SNC) podem acarretar transformações permanentes, que aumentam a vulnerabilidade do indivíduo a transtornos comportamentais – inclusive para desenvolvê-los tardiamente, como no caso da esquizofrenia. A presença e os cuidados maternos são importantes para manter o equilíbrio durante o neurodesenvolvimento. Afastar a mãe é o que chamamos de ‘estressor’, situação que causa um aumento na liberação de hormônios do estresse – que não poderia acontecer nesse momento – e um desequilíbrio, inclusive, em neurotransmissores”, explica.
Para o estudo em questão, os filhotes foram distribuídos, no nono dia após o nascimento, em dois grupos: um deles passou pela privação materna durante o período de 24 horas, enquanto o outro continuou com a mãe. No décimo dia, a morfologia neuronal de dois filhotes de cada um desses grupos foi analisada. A partir do vigésimo primeiro dia, os filhotes foram desmamados e alojados em duplas do mesmo sexo, provenientes da mesma ninhada, em outra gaiola. Com pouco mais de 40 dias de vida, foram realizados os testes denominados Investigação Social e Interação Social, com base nos quais são observados os comportamentos sociais dos animais pelo ato de cheirar, brincar ou morder, por exemplo.
A estudante, orientada por Girardi, avaliou a quantidade e o comprimento das ramificações neuronais com técnicas de neuroimagem. O que já se sabe é que neurônios com ramificações mais curtas ou em número menor possuem alguma relação com alterações de comportamento. Além disso, no córtex pré-frontal, localizado no lobo frontal (parte da frente do cérebro), as alterações relativas ao formato, comprimento e número de dendritos (prolongamentos finos dos neurônios), verificadas após a morte dos indivíduos, convergem com alterações na morfologia (forma) dessas ramificações, observadas em indivíduos diagnosticados com esquizofrenia ou autismo.
Amanda Centenaro (à dir), em dia de experimento no laboratório, com seu orientador, o docente Carlos Girardi, ao lado das estudantes Raquel Laurentino (esq.) e Antonilde Ruiz (centro) / Imagem: arquivo pessoal
Um modelo universal
Os pesquisadores pontuam que o estudo foi realizado com ratos Wistar – estes são modelos desenvolvidos para a pesquisa biomédica, nativos da colônia criada pelo fisiologista Henry Donaldson no Instituto Wistar (Pensilvânia, EUA), em 1906. Os espécimes foram fornecidos pelo Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais para Biologia e Medicina (Cedeme), onde os animais são criados e mantidos dentro dos padrões éticos.
A utilização dos roedores nesse estudo é marcada pela necessidade de controle das situações e estressores para que se possam entender diferentes fatores. Para o docente da Unifesp, o estudo poderia ser desenvolvido a partir de relatos de crianças que tivessem passado pela privação materna ou algum tipo de estressor durante o neurodesenvolvimento. No entanto, pelo fato de serem baseadas apenas na memória, essas informações não teriam fidelidade suficiente para o estudo, havendo inclusive o risco de perda de informações essenciais.
Além disso, algumas técnicas específicas, como a análise do tamanho dos neurônios (uma etapa crucial), só podem ser realizadas após a morte. A única maneira viável de efetuar uma avaliação desse tipo em seres humanos adolescentes é por meio de técnicas de neuroimagem com o indivíduo vivo. "Nesses casos, não há como avaliar o neurônio em si – formato, tamanho e quais substâncias estaria produzindo; por isso, a importância desse estudo em modelos animais", assegura Girardi.
O orientador esclarece que o período do desenvolvimento do indivíduo em que ocorre um desequilíbrio bioquímico no cérebro determina o tipo de alterações que sobrevirá. Nos mamíferos, o desenvolvimento biológico continua após o nascimento. Considerando-se o SNC de seres humanos e roedores, no início do período pós-natal ainda ocorrem diversos eventos como a formação de novos neurônios e sinapses, mas ainda não são conhecidos todos os eventos afetados durante o desenvolvimento.
Outras questões ainda desconhecidas dizem respeito ao motivo e aos mecanismos que geram essas alterações; por isso, uma das perguntas a que o projeto de Centenaro pretende responder é se a alteração na morfologia neuronal é, de fato, um dos efeitos da privação materna. A hipótese é que, quando observados, os neurônios dos espécimes pertencentes ao grupo que passou pela privação materna terão menos dendritos e/ou estes serão mais curtos.
A reunião dos dados coletados ainda está em andamento, pois a estudante realiza, no momento, análises laboratoriais e seu relatório de pesquisa. Centenaro está imbuída de uma responsabilidade maior após ter ingressado no programa de Iniciação Científica. E acredita que os resultados obtidos terão impacto na sociedade, uma vez que poderão auxiliar no entendimento mais amplo da influência de adversidades no início da vida – época em que se origina a maior parte dos transtornos de neurodesenvolvimento.
Iniciação Científica: desenhando o futuro
Edição 13 • Outubro 2020