Alguns acreditam que o lugar de onde vêm, suas experiências, a forma como são criados, as coisas que aprendem e começam a defender, são guias de suas escolhas. Outros acreditam que aquilo que nascem para ser, de alguma forma, mora dentro de si. A teoria das inteligências múltiplas, de Howard Gardner, nos diz, basicamente, que cada um possui uma inteligência diferente e predominante. Talvez, apesar de tudo, sempre haja algo que grite mais alto em nosso ser. Algo que nos inspire, nos impulsione. Algo que nos faça sorrir e sentir cada centímetro de si pulsar. Talvez, em certos casos, possamos chamar esse algo de “fazer exatamente o que sentimos ter nascido para fazer”.
Essa história é sobre alguém que possui um brilho intenso no olhar, uma voz gentil e uma leveza ímpar ao narrar seu próprio caminho. Talvez também seja a história de alguém que nasceu para fazer o que faz. Ela começa há quarenta e um anos, em Presidente Prudente, quando o bancário João Cruz e a auxiliar de enfermagem Maria Cecília conceberam o menino Fábio. Desde seus primeiros passos, os pais decidiram que deixariam aquela que acreditavam ser a maior e melhor herança para o filho: a oportunidade de estudar. Seus pais foram seus primeiros mestres.
No primeiro dia de aula na Pré-escola Pingo de Gente, todas as crianças pareciam desesperadas! Tristes, chorando, segurando os braços de seus pais, implorando para não entrarem naquele novo lugar incomum às suas vidas. Fábio não entendia bem as outras crianças, porque sentia ansiedade em poder entrar na escola, queria logo estudar! E essa era uma alegria esperada por ele. Sua formação começou ali, nas primeiras coisinhas ensinadas pela “tia” Célia, em cada número e em cada nova letra do alfabeto. A Pingo de Gente não foi apenas onde estudou quando criança, mas tornou-se o símbolo de onde deu seus primeiros passos.
Infância em Presidente Prudente ao lado dos pais João e Maria Cecilia Cruz (Arquivo pessoal)
Estudantes da Pré-escola Pingo de Gente com professora Célia ao fundo (Arquivo pessoal)
Fábio prosseguiu seus estudos nas escolas públicas do município onde morava, carregando consigo as palavras edificantes de seus pais sobre o imensurável valor de estudar. Quando concluiu os ensinos Fundamental e Médio, decidiu que gostaria de ser médico. Prestou vestibular para cursos de Medicina, mas, apesar de sua determinação, esse não era seu caminho. Também pensou em cursar Farmácia e, dessa vez, passou no vestibular para estudar na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara. Sua mãe logo arregaçou as mangas e voltou a trabalhar para ajudar o filho com as despesas na nova cidade. Pouco tempo depois, Fábio foi morar em uma república. Lá viviam doze ou treze pessoas, doze ou treze universos particulares. Todos muito diferentes, com diferentes níveis sociais, criações, ideias e visões de mundo. Por um lado, pode ser um tanto complicado e bastante caótico. Por outro, o lado que Fábio decidiu ver, havia a oportunidade de conviver com a grande diversidade dentro daquele ambiente compartilhado e aprender a ser mais aberto, mais tolerante.
No primeiro dia de faculdade, João Aristeu da Rosa apresentou aos calouros o Programa Especial de Treinamento (PET), um programa de formação para graduandos interessados no ingresso em cursos de pós-graduação depois de formados. A ideia era preparar os estudantes para seguirem com seus estudos na área acadêmica e o programa possuía as vertentes de pesquisa, ensino e extensão. Fábio se interessou no instante em que o professor apresentou o programa e inscreveu-se para participar. O PET lhe trouxe muitas experiências construtivas e uma das mais marcantes costumava acontecer no início do ano: todos os participantes ficavam alojados em um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. Os graduandos realizavam exames parasitológicos, exames da água e ministravam cursos de formação de líderes em saúde. Ali, Fábio aprendeu muito. Primeiro porque, de certa forma, se identificava com a realidade daquelas pessoas – apesar de não ter uma origem fundiária, sua procedência era também bastante humilde. E, desde aquele momento, sentiu que estava devolvendo um pouco do investimento que as pessoas estavam fazendo nele. Apesar de não ter férias nos meses de janeiro e fevereiro, sentia felicidade em estar trabalhando com aquela população e poder ensinar um pouco do que era parte de sua formação - além de aprender. Aprendia com eles sobre diversas coisas, inclusive sobre plantas medicinais que poderiam ser levadas para o meio acadêmico a fim de pesquisar suas funções e propriedades. Enquanto trabalhavam no acampamento, Fábio e seus colegas também observavam aqueles que poderiam vir a ser irradiadores das informações que eles levavam. Além disso, nos meses de julho, realizavam uma ação chamada Férias na Universidade, na qual levavam os jovens para conhecer e, acima de tudo, mostrar que a universidade pública também era deles, que tinham o direito de sonhar em estar ali.
Período da Iniciação Científica de Fábio, ao lado dos colegas Adrien Falco Pizzi, Gabriela Cristina dos Santos e Marinaide Naegele (Arquivo pessoal)
Realização de experiências durante a IC no laboratório da docente Cleópatra da Silva Planeta (Arquivo pessoal)
Do PET à IC
O PET trouxe mais uma base importante para a formação de Fábio: a Iniciação Científica. No início de seus projetos, os estudantes deveriam encontrar professores que pudessem auxiliá-los. Foi então que conheceu Cleópatra da Silva Planeta. Na época a pesquisadora havia voltado há pouco da Universidade de Harvard, em Massachussetts, e realizava seu trabalho acerca da dependência de drogas e abuso. Cleo, como prefere ser chamada, sempre demonstrou grande preocupação de que seus orientandos fossem além da pesquisa realizada no laboratório, por isso aconselhava que os pesquisadores estivessem sempre em contato com os dependentes, seus pais ou parentes próximos, para que pudessem ver realmente quem suas pesquisas poderiam impactar. Além disso, os incentivava a levarem seu conhecimento acadêmico também para a população.
A pesquisadora era uma pessoa muito responsável e empolgada com o que fazia. Mais do que ensinar, ela estimulava seus orientandos a participarem de congressos científicos, apresentarem seus trabalhos e, de alguma forma, cativá-los em relação à ciência.
Fábio trabalhou investigando a influência do estresse na dependência de drogas e abuso e desenvolveu esse tema durante seus cinco anos de graduação. Seu gosto por aquele universo aumentava exponencialmente e, quando terminou o curso, percebeu que estava completamente apaixonado pela vida acadêmica.
— Aquilo me transformou! Talvez se tivesse feito Medicina eu não teria essa oportunidade. Talvez eu não fizesse aquilo que tenho vocação pra fazer.
Faltando pouco tempo para o fim da graduação, o estudante foi visitar seus pais em Presidente Prudente. Seu João estava levando o filho para casa quando simplesmente desviou o caminho. O jovem achou estranho, mas não disse nada. Então o pai passou em frente a uma farmácia pequenininha, virou para o filho e disse, orgulhosamente: “Ó, isso aqui é nosso!".
Ele não soube como reagir instantaneamente e, em seus pensamentos, surgiu um grande dilema. Sabia que seu pai aposentado, embora não ganhasse muito, tinha seu fundo de garantia e, com isso, fez aquela surpresa. Fábio imaginava quantos de sua turma gostariam de ter a oportunidade que seu pai estava lhe dando. No entanto, ao mesmo tempo, apesar do medo de parecer ingrato, não sentia ter vocação para ser o profissional que atua em uma farmácia. Achava bonito, mas desejava profundamente seguir com a vida acadêmica – para a qual havia se preparado. De repente, viu-se atônito em meio àquele dilema.
O impasse fez com que Fábio decidisse tentar dividir seu tempo. E então, nas férias e feriados, passou a trabalhar na farmácia. Esses meses foram suficientes para que tivesse certeza do que queria: ser farmacêutico, mas na vida acadêmica. A parte difícil seria contar para o pai sobre o caminho que escolheu. Mesmo assim, estava decidido. E, no dia de sua formatura, a mãe disse uma frase que o ajudou e marcou para sempre: “A gente é feliz fazendo aquilo que gosta”. No fim, o pai e a mãe entenderam o caminho de Fábio e o apoiaram plenamente em suas escolhas. Com isso, o jovem farmacêutico sentia que deveria se dedicar ainda mais e dar o melhor de si para mostrar aos pais que realmente “era aquilo”.
Pouco tempo depois Fábio entrou para o Programa de Pós-Graduação em Ciências Fisiológicas na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E, no dia da defesa de sua dissertação, os pais choraram emocionados junto ao filho. Naquele momento, não tinham mais dúvidas de que ele era feliz - feliz fazendo exatamente o que gostava. Seu João e dona Maria Cecília continuam incentivando o filho em cada um de seus passos. Sofrem, choram e vibram juntos. Acima de tudo, reconhecem a importância da educação. Seus pais são seus maiores influenciadores e sua inspiração.
Fábio prosseguiu no doutorado com a pesquisa iniciada em sua Iniciação Científica. Escolheu continuar trabalhando com o tema, não apenas por ter se identificado, mas também por uma motivação social. Desde o início de sua pesquisa, via que pessoas na situação de dependência eram deixadas de lado, como se tivessem escolhido e não quisessem mudar. Ele queria mostrar que a dependência tinha uma base neurobiológica e deveria ser tratada tal como ansiedade ou depressão. E, embora trabalhando na pesquisa básica, entendendo a Neurobiologia, sentia que seu estudo poderia influenciar na sociedade, ajudar a desconstruir o estigma em torno do tema e, consequentemente, ajudar as pessoas. Ele enxerga que a dependência é tratada como assunto de polícia, quando, na verdade, é assunto de saúde pública.
Depois de algum tempo, já no pós-doutorado, Fábio passou em um concurso público e teve que cancelar sua bolsa de estudos. Porém, por motivos que nem ele sabe, o concurso simplesmente foi invalidado e a única coisa que havia sobrado da bolsa era um congresso nos Estados Unidos. Como já estava pago, ele resolveu ir. Surpreendentemente, um professor o reconheceu e perguntou se ele era orientando de Cleo. Os dois conversaram e, então, surgiu um convite de trabalho. Fábio, meio cabisbaixo, explicou que não teria como ir, pois estava sem a bolsa. O professor então ofereceu um salário para que ele trabalhasse contratado em seu laboratório no National Institute on Drug Abuse como pesquisador. E, claro, Fábio aceitou. Durante quatro anos ele aprendeu muito sobre o estudo molecular e teve um aprofundamento de técnicas de vanguarda. Bruce Hope, o professor que o contratou, mostrava-se grande entusiasta em desenvolver técnicas, metodologias e inovações para que as pessoas pudessem usar em seus experimentos. Lá, Fábio começou a desenvolver a linha de pesquisa que mantém até hoje, chamada neuronal ensembles, na qual procura entender a dependência como algo que envolve comportamentos de aprendizado e memória.
Quando voltou para o Brasil, trabalhou por dois anos no Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), liderado por Glaucius Oliva, no Centro de Desenvolvimento de Fármacos do Instituto de Física de São Carlos. Em paralelo, recebeu o Auxílio à Pesquisa Jovem Pesquisador da Fapesp e, com isso, conseguiu montar seu laboratório. Nesse meio tempo, Isabel Quadros, que havia sido sua co-orientadora nos Estados Unidos, telefonou avisando que havia sido aberto um concurso para trabalhar na Unifesp na área de Psicofarmacologia. Ele dizia que não iria, porque passar em um concurso para trabalhar na Unifesp era um sonho inatingível. Mas Quadros insistiu, incentivou e ele acabou indo. Seu sonho quase impossível, graças à sua dedicação e ao estudo, foi alcançado. Fábio passou no concurso, colocou seu laboratório dentro de um caminhão, mudou-se para São Paulo e começou a desenvolver suas pesquisas dentro da universidade.
Hoje também realiza um projeto na cracolândia, o qual considera um intenso aprendizado e uma grande realização por poder ajudar as pessoas que vivem ali. Embora muito difícil, é também muito gratificante. Sente que vale a pena trabalhar com aquelas pessoas e o fato de tentar mudar a realidade de, pelo menos alguns, o motiva.
Hoje Fábio é docente na Unifesp e orienta estudantes de diversos níveis acadêmicos. Sempre procura convidar professores visitantes para que seus orientandos tenham oportunidades, assim como ele teve, especialmente aqueles que estão iniciando suas vidas acadêmicas realizando projetos de Iniciação Científica. Para ele, a IC mudou tudo em sua vida. Foi a partir dela que decidiu seguir na área acadêmica e que, hoje, se tornou o profissional que é. Além disso, foi uma das grandes motivações para que se tornasse uma pessoa entusiasta e que busca estimular e cativar seus orientandos em relação à ciência.
— Toda vez que eles chegam com o mesmo brilho nos olhos que eu cheguei em Araraquara, muito tempo atrás, me sinto responsável por eles. Nem todo dia acordo bem, mas penso: “Não, hoje tenho que ficar bem, porque o Ben, a Camila, a Giovanna, o Ricardo, a Michele vão estar no laboratório, e eu tenho a responsabilidade de não deixar eles se frustrarem com aquilo”. Toda vez que acordo, lembro deles e falo: “Vou pro laboratório e esquecer qualquer coisa adversa acontecendo fora dele”, porque acho que eles merecem o melhor, então tento ser o melhor pra eles. A Iniciação Científica foi uma oportunidade pra mim e quero que seja uma oportunidade pra eles.
Para Fábio, mesmo os estudantes que não queiram seguir na área acadêmica, deveriam fazer Iniciação Científica, porque a pesquisa é também uma oportunidade de desenvolverem senso crítico – não repetirem métricas e receitas, mas irem além do técnico e entenderem o motivo pelo qual estão fazendo isso ou aquilo. Além disso, acredita que é preciso olhar com cuidado para os orientandos de Iniciação Científica. Que os orientadores não devem simplesmente depositar suas solicitações nesses estudantes, mas suas esperanças. Que os incentivem para que continuem fazendo o que gostam, busquem novos projetos, bolsas e tenham o melhor. Afinal, além de tudo, são eles que darão continuidade àquilo que os próprios docentes são hoje. Fábio se sente como uma extensão de Cleo e enxerga que seus orientandos serão como uma extensão dele. Como ela costumava dizer a ele: “É como um barco, uma arca na qual vão se colocando pessoas dentro e criando uma família científica muito grande”. Na ciência ou na vida, ele acredita que nada se constrói sozinho. Tudo é construído em conjunto, conversando com os colegas e com outros professores, aumentando a visão do próprio projeto e criando um caminho de coletividade.
— É o que a gente precisa. Sermos mais coletivos dentro da universidade pública.
Ele relembra com carinho de um bom exemplo disso: Rodrigo Molini Leão também fez Iniciação Científica no laboratório de Cleo. No início, seus anseios, sonhos e incertezas eram exatamente os mesmos dos outros pesquisadores de IC. Quando iniciou seu doutorado, Rodrigo foi orientado por Cleo e co-orientado por Fábio. Mas, mais do que orientadores e orientando, os pesquisadores criaram o caminho de coletividade do qual Fábio se orgulha. Um sempre esteve ao lado do outro, dando forças quando necessário e colaborando na construção de suas carreiras. Hoje Rodrigo é professor de Farmacologia na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e, apesar da distância física, sempre estão colaborando entre si e seus laboratórios muitas vezes são como extensões um do outro. Fábio acredita que sem a ajuda e apoio de seu amigo, muitas coisas provavelmente não teriam sido possíveis em sua própria carreira. E que, além de Rodrigo, outros de seus colegas, como Paulo Carneiro de Oliveira, Paula Bianchi, Paola Palombo, Sheila Engi, Caroline Zaneboni, Augusto Anésio, Thais Yokoyama, Natália Bertagna, Thamires Righi, Fernando Bezerra, Mayara Perillo, Gabrielle Tavares, Lara Fonteles e Jaqueline Moreira são parte importante de sua caminhada. Para ele, como diria Raul Seixas: “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade”.
Fábio ao lado de seus orientandos de Iniciação Científica Giovanna Victória e Ben Tagami (Fotografia: Alex Reipert)
Iniciação Científica: desenhando o futuro
Edição 13 • Outubro 2020