Heloísa Mota acabou de completar 20 anos de idade, está cursando o 3º ano do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia do Mar no Instituto do Mar (IMar/Unifesp) – Campus Baixada Santista, e entrou em sua primeira Iniciação Científica em 2018. O orientador da pesquisa, Augusto Cesar, é doutor em Ciências Biológicas pela Universidad de Murcia (UM), na Espanha, e professor associado no IMar/Unifesp desde 2011. Os dois fazem parte de um estudo de grande relevância para o meio ambiente, que está sendo desenvolvido no Departamento de Ciências do Mar do IMar/Unifesp.
Há menos de dois anos, Mota passou a fazer parte de uma equipe de pesquisadores e estudantes com diferentes graus de formação dedicados à análise dos impactos da acidificação dos oceanos. O projeto, coordenado por Cesar, intitulado Avaliação dos efeitos da acidificação dos oceanos sobre a biodisponibilidade de poluentes emergentes – Acidocean, é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
“O nosso estudo tem duas frentes: selecionar compostos sem regulamentação que já podem ser encontrados em concentrações elevadas nas pesquisas de campo feitas na baía de Santos e analisar qual seria o impacto desses contaminantes em diferentes cenários de acidificação oceânica”, explica o coordenador.
Um dos principais focos do estudo está em simular cenários prospectados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), criado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (ONU Meio Ambiente) com o propósito de sintetizar e divulgar informações científicas, para os próximos cem anos, bem como um possível cenário relacionado à técnica de Captura e Armazenamento de Dióxido de Carbono (CCS) em estruturas geológicas estáveis, tecnologia desenvolvida para auxiliar na despoluição atmosférica. O processo consiste em captar o dióxido de carbono (CO2) das fontes geradoras, submetê-lo a altas pressões, convertê-lo em líquido e injetá-lo em reservatórios petrolíferos. A tecnologia CCS é considerada, por diversos órgãos e convênios internacionais (IPCC, Ospar Londres, entre outros), uma forma eficaz de diminuir a concentração de CO2 na atmosfera. O relatório especial sobre a captura e armazenamento de CO2 do IPCC (2019) afirma que essa atividade poderia contribuir em cerca de 20%-55% para o esforço de diminuir as emissões deste gás até o ano de 2100.
Apesar da tecnologia CCS ser considerada relativamente segura, o seu sucesso depende da retenção estável do CO2 dentro das formações geológicas utilizadas como locais de armazenamento, carregando, portanto, seus próprios riscos, segundo Cesar. Faltam estudos sobre os efeitos de possíveis rupturas desses reservatórios e a subsequente liberação do CO2, que podem ser provocadas por abalos sísmicos ou movimentos nas placas tectônicas.
É nesse ponto que entra o estudo que ele e seus colegas estão desenvolvendo. Mota detalha: “Nós trabalhamos com três níveis de pH oceânico: 8,1, que é o encontrado atualmente em ambientes marinhos; 7,6, que é o prospectado até o fim do século XXI; e 7,3, que encontraríamos em uma situação de um possível vazamento do CO2 armazenado nessas estruturas geológicas.” O cálculo da futura acidez oceânica foi prospectado por um grupo de especialistas internacionais a partir de modelos matemáticos e de dados do ritmo já observado das ações do homem no ambiente.
O projeto é mais abrangente e também avalia os efeitos adversos de muitos contaminantes de preocupação emergente sob esses cenários de acidificação oceânica. Mota, por exemplo, estudou os efeitos da orfenadrina, princípio ativo do analgésico e relaxante muscular conhecido como Dorflex®. Foi um dos fármacos que despontaram por suas concentrações elevadas no mar da Baixada Santista, assim como o ibuprofeno, losartan, diclofenaco, entre outros que estão sendo estudados por estudantes que compõem o grupo de pesquisa. Os resultados da pesquisa de Mota estarão na dissertação de mestrado de Mariana Gonçalves Dias, estudante no Programa de Pós-graduação em Biodiversidade de Ecossistemas Marinhos e Costeiros do IMar/Unifesp.
Para realizar a pesquisa, Mota coletou amostras de água e sedimento da área de influência do Emissário Submarino de Santos e Guarujá, onde há lançamento de esgoto, já que muitos dos compostos estudados são fármacos, que geralmente têm esse destino. Apesar de haver estações de tratamento das águas residuais, as instalações não possuem os sistemas necessários para remover integralmente esses compostos, resultando nas altas concentrações identificadas no mar da Baixada Santista, bem como em outras partes do mundo.
O que torna esse estudo particularmente importante é o seu foco em contaminantes emergentes. “Essas substâncias são consideradas emergentes por não possuírem regulamentação que faça o controle e a fiscalização de sua presença no ambiente”, esclarece o coordenador da pesquisa. “Consequentemente, esses contaminantes ainda não possuem valores numéricos orientadores para o enquadramento dentro da legislação e das resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente.”
Sistema de injeção de CO2, formado pelo Controlador Apex, montado para avaliação de efeitos da acidificação oceânica em amostras de água. O aparato permite medir salinidade, temperatura, pH e ORP (medida para saber a capacidade de redução e oxidação do material) / Imagens: Letícia Onofre Lopes/arquivo pessoal
Para avaliar os impactos da acidificação oceânica em seres vivos, o estudo realiza testes laboratoriais em organismos estandardizados, que incluem espécies bivalves, como mexilhões, entre outros invertebrados, como ouriços-do-mar. Após esse processo, uma análise estatística integrada busca as possíveis associações entre causa e efeitos biológicos, contemplando cada um dos tratamentos das mudanças de pH e acidificação, e as concentrações desses contaminantes ligados aos resultados detectados a partir desses experimentos realizados no laboratório. A parte de Mota na pesquisa já é conclusiva: os dados demonstram o aumento dos efeitos nocivos da acidificação nas espécies marinhas estudadas.
O estudo tem caráter inter e multidisciplinar, demandando as ferramentas da Química Analítica Ambiental, tanto quanto os experimentos em laboratório com organismos vivos. É um trabalho complexo que exemplifica a necessidade de uma equipe entrosada e comprometida com a manutenção do rigor científico e acadêmico para a pesquisa produzir resultados confiáveis.
É nesse contexto que a Iniciação Científica funciona como uma porta de entrada dos estudantes de graduação à pesquisa. Para Mota, foi um momento de virada em sua formação. “No meu primeiro dia no laboratório, eu estava tremendo da cabeça aos pés, mas saí de lá com um sorriso de orelha a orelha”, relembra. “Eu pude ver como realmente ocorre todo o processo de construção do conhecimento científico. Nós estudamos isso na sala de aula, mas ver na prática como ocorre e são desenvolvidos os trabalhos é muito diferente, é incrível.”
Indo além, a estudante recorda toda a trajetória anterior à universidade, que teve algumas reviravoltas. “Eu sempre gostei muito de lidar com arte, então eu fiz aulas de dança, desenho, piano, violão, e eu também queria estudar História da Arte”, explica. “No ensino médio, eu me apaixonei por Física e Biologia. Eram as matérias que eu tinha mais prazer em estudar.”
Moradora de Guarujá (SP), a jovem viu a oportunidade de ingressar na Unifesp. Ela conta que seu interesse específico foi o Curso de Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia do Mar (BICTMar), cogitando a possibilidade de seguir os estudos em Engenharia Ambiental. Em suas palavras, caiu como uma luva: “É o curso mais a minha cara possível, porque eu gostei de todas as matérias e não queria abrir mão de nenhuma. Agora é só me formar.”
Apesar dos desafios da vida universitária, o contato da graduanda com o mundo acadêmico por meio da Iniciação Científica foi crucial para sua autoconfiança. “Quando a gente entra no curso, tem muito daquilo: ‘Nossa, o meu professor tem pós-doutorado e eu nem sei se vou conseguir escrever um TCC’”, brinca, destacando o desafio de escrever e produzir o material nos moldes acadêmicos. “Quando eu vi que consegui escrever um relatório completo, construindo a introdução, as seções de materiais e métodos, eu pensei: ‘Não é impossível; eu consegui, eu também sou capaz.’ Então estou muito feliz, realizadíssima, e não vejo a hora de participar e desenvolver mais projetos.” Um “yes!” e um soco no ar evidenciam a grande empolgação da jovem com seu futuro.
“Se Deus quiser, eu vou fazer mestrado”, projeta Mota. “A gente tenta! Vamos ver o que a vida reserva para a gente.” Nesse momento, Cesar encoraja: “Você vai conseguir sim. Você já começou. Quando a gente começa, não volta mais.”
O coordenador do projeto diz isso com uma bagagem de muitos anos como pesquisador, professor e orientador. Seu histórico inclui orientação em Iniciação Científica, Trabalho de Conclusão de Curso, Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado. Em sua experiência, estudos como o Acidocean se beneficiam quando envolvem os estudantes de todos os níveis na rotina acadêmica. “Todos trabalham juntos; um colabora com o outro e a gente vai, assim, como uma grande equipe”, explica Cesar. “Esse é um modelo de trabalho em equipe que adotamos e é bem-sucedido, porque os estudantes acabam se ajudando e nós vamos tentando conduzir as atividades e demandas individuais, tirado as dúvidas, promovendo a reflexão, discussão e o aprendizado de todos. Muitas coisas eles acabam resolvendo por conta própria e o desenvolvimento acaba ocorrendo naturalmente. Vamos acompanhando e indicando os caminhos, mas eles pouco a pouco acabam conquistando essa autonomia.”
Heloísa Mota, estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia do Mar no IMar/Unifesp e Augusto Cesar, professor associado no IMar desde 2011 / Imagens: arquivo pessoal
Essa rica dinâmica de aprendizado rende frutos notáveis, como é o caso do trabalho desenvolvido por Mota, Cesar e outros estudiosos sobre a acidificação oceânica. O estudo ainda tem uma trajetória considerável a percorrer. Com as informações apuradas durante a pesquisa, começa a fase de interpretar os resultados, elaborar artigos, passar o material por revisão, tradução, formatação e adequação para a divulgação. Só então o produto científico será submetido às revistas especializadas.
Nesse tópico sensível, que é a influência da ação antrópica na natureza, o estudo tem relevância que vai muito além de comunidades de cientistas e especialistas. Trata-se de informações que usam os consensos encontrados no meio acadêmico para produzir mais conhecimento, fornecendo respostas a questões importantes que representam grandes desafios para sustentabilidade ambiental.
A responsabilidade inerente a esse trabalho não passa batido por Mota: “Toda vez que as minhas amigas têm dúvidas a respeito de algo relacionado ao meio ambiente, elas me mandam uma mensagem. Com o conhecimento que nós temos, precisamos explicar as coisas da melhor forma possível para as pessoas poderem ter acesso a essas informações”.
Iniciação Científica: desenhando o futuro
Edição 13 • Outubro 2020