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Comissão da verdade

“Eu sou avô dos black blocs” Ivan Seixas, ex-preso político e membro da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, analisa o impacto do legado da ditadura no Brasil contemporâneo Erika Sena Entrementes - Conte um pouco da sua história. Ivan Seixas - - Sou filho de militantes operários que lutavam por melhores condições de vida. No bairro onde nasci não tinha água, luz, esgoto, educação, transporte. Todo mundo lutava por melhores condições – gente que era militante e gente comum, lutando pela sobrevivência. Em 1964, quando houve o golpe, essas pessoas passaram a lutar contra a ditadura. E - Seus pais já estavam nessa luta há bastante tempo? IS - Sim, desde 1940. Meu pai militava em Porto Alegre, a gente sabia de tudo - até para nos precavermos dos perigos. Depois, quando a gente veio para São Paulo, em 1970, ele se integrou a uma organização da luta armada – o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Oficialmente, eu não era militante, mas imprimia panfletos, sabia que morava em nossa casa Carlos Lamarca, o homem mais procurado do país. Nos dias de reunião eu fazia a vigilância fora de casa. Então, decidi virar militante. Passei a participar também da luta armada. Quando eles nos capturaram, a nossa chegada no DOI-CODI foi no grito: “Olha quem nós pegamos. O Roque e o filho dele, o Teobaldo”, que eram nossos nomes de guerra. E - Você tinha que idade quando foi preso? IS - Tinha 16 anos. No dia da prisão, trocamos socos com eles. A pancadaria foi tão violenta que a algema se abriu, até que eles conseguiram nos dominar e nos conduziram para a sala de tortura. Eu fui para o pau de arara e o meu pai para a cadeira do dragão, um de frente para o outro. Meu pai aguentou dois dias de tortura e, depois, eles o mataram. Ele ainda estava vivo quando os jornais deram a nota do Exército dizendo que ele tinha morrido numa troca de tiros. E - Mataram seu pai na sua frente? IS - Não bem na minha frente. Tinham umas divisórias, mataram ele lá. Minha mãe estava presa na sala de baixo, ouviu as torturas e viu o corpo dele pelo vitrô, com a cabeça envolta em jornais. Ela o reconheceu pelas mãos e pela roupa. Não bastasse isso, um torturador gritou para o outro: “Quem é o presunto?” E ele respondeu: “Era o Roque”. E riram. Então, ela teve certeza. E - O que aconteceu após a morte do seu pai? IS – Começou a minha história como preso. E a da minha mãe e das minhas irmãs. Elas ficaram um ano e meio presas. Saíram, foram julgadas e absolvidas por falta de acusação. Eu fiquei preso. Não fui nem processado. Jogaram o meu caso para o juizado de menores. Fiquei na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. Foi uma determinação. Não era uma sentença porque eu era menor. Esse lugar era um hospício-prisão. Você imagina qualquer crime horroroso, o autor estava lá. O objetivo era me deixar louco. Eu não podia escrever nem receber cartas, ler jornal, revista, assistir televisão. Eu não tinha direitos de preso político, porque não existia preso político no Brasil, segundo eles. Mas eu também não tinha direitos de um preso comum, porque eu não era preso comum. Eu não tinha direitos. E - Por quanto tempo você ficou nesse lugar? IS -Fiquei três anos e mais outros quase três junto com os presos políticos, entre o Dops e o presídio Tiradentes. Os caras da repressão começaram a se livrar dos casos mais incômodos, com denúncias no exterior de que tinha tortura, desaparecimento. No meio disso, tinha o caso de um menor que foi preso, que estava num hospício, que praticamente viu o pai morrer etc. E eles tinham que se livrar desse menor. Mas não tinha uma solução para a minha pena. Eles pediram que eu pedisse para sair e eu disse que não. Eles insistiram. Percebi que tinha alguma coisa maior. Decidimos, eu e minha família, que pediríamos a minha soltura, reivindicando a “revisão da situação”. Remeteram o meu caso à Auditoria Militar. Saí da prisão achando que seria morto na porta. E - Como foi a vida depois da sua saída da prisão? IS - Fiquei dois ou três anos com os caras me seguindo. Entrava no ônibus, o carro ia do lado; descia e o carro continuava; subia até a Martiniano de Carvalho, onde eu estudava, e eles iam do meu lado. Aí começou a campanha pela anistia. Me integrei em todas as campanhas de redemocratização, eleições diretas. Fundei o PT e saí um ano e meio depois brigado com o José Dirceu. E - Existe relação entre a época da ditadura e o estado contemporâneo de violência policial? IS - É a herança da ditadura. A criminalização dos movimentos sociais, hoje, tem a mesma base, o mesmo princípio: a ideologia da segurança nacional. A estrutura da PM ligada ao Exército foi criada em março de 1970. Foi definido por decreto que a PM é força auxiliar do Exército e esse decreto nunca foi revogado. Ainda hoje, o governador de qualquer Estado, para nomear o comandante da PM, tem que pedir autorização ao Exército. Teoricamente, é uma formalidade. Mas o cara que se torna comandante com a anuência do Exército, deve obediência a quem? Ao Exército, não ao governador. O serviço secreto da PM não se reporta ao comandante da PM e sim ao Exército. Tem uma cadeia de comando paralelo que subverte o pacto federativo – a União cuida da União, o Estado cuida do Estado e o Município cuida do Município. A ditadura centralizou tudo isso e o sistema é mantido pelo decreto que criou a Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), que é comandada por um general. E - O que você acha dos black blocs e das jornadas de junho? IS - Até junho, qualquer manifestação era reprimida. Eles desceram o cacete, furaram olho de jornalista e o diabo a quatro. Mas, a população não voltou pra casa. Voltou pra rua. Reconquistamos o direito de protestar. Costumo brincar que sou avô dos black blocs, porque eu fiz a luta armada. Eles têm mais é que detonar mesmo, radicalizar. Só que tem muita infiltração. É preciso ter uma calibragem, para não servir de pretexto. E - A revisão da Lei da Anistia pode acontecer? IS - O STF não diz que não pode ser revista e sim que houve um acordo político e que, portanto, os torturadores não podem ser processados. Acho que a gente está caminhando para essa revisão por um motivo muito simples. O mundo está olhando para o Brasil e está dizendo que não podemos ficar nessa situação. A Corte Interamericana condenou o Brasil, dizendo que os torturadores precisam ser punidos. O Brasil tem que achar os desaparecidos e abrir os arquivos militares. Os três poderes precisam se juntar para resolver isso. Não é uma opção. Tem que fazer. E - O trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) fica inacabado sem a punição dos responsá- veis pelos crimes da ditadura? E - O trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) fica inacabado sem a punição dos responsá- veis pelos crimes da ditadura? IS - - A função da CNV é apresentar a ditadura para a população. As pessoas precisam saber que houve uma ditadura, quais crimes ela cometeu e quem são os criminosos. O relatório final da CNV tem três grandes partes: a apuração (os crimes), as conclusões (de que houve tortura e de que isso não é aceitável) e a última - a recomendação - que orienta a criar mecanismos para coibir essas práticas, a começar com a punição aos torturadores. A recomendação é a mais importante. Nunca no Brasil se falou tanto em ditadura. O Brasil é o único país que subverteu a estrutura da CV. Em qualquer outro país, foi criada uma Comissão da Verdade Nacional. Aqui, além da CNV, criamos comissões estaduais, municipais, nas universidades e nas entidades sindicais. E - Esse movimento nas universidades é importante? IS -É fundamental. Mesmo se nada tivesse ocorrido na Unifesp, é fundamental contar que houve repressão. Todas as escolas e faculdades têm TCCs sobre a ditadura. Estamos descobrindo a nossa história.   Sumário do número 4