Sobre Dilma, Rafaelas e Jéssicas
Bruno Comparato No discurso que fez logo após ter sido eleita presidenta da República, em 31 de outubro de 2010, a primeira vez que esse cargo passou a ser exercido por uma mulher no Brasil, Dilma Rousseff fez questão de ressaltar precisamente esse ponto: “Eu gostaria muito que os pais e as mães das meninas pudessem olhar hoje nos olhos delas e dizer: ‘Sim, a mulher pode’. A minha alegria é ainda maior pelo fato que a presença de uma mulher na Presidência da República se dá pelo caminho sagrado do voto, da decisão democrática do eleitor, do exercício mais elevado da cidadania”. Aos ouvintes atentos, o discurso da recém-eleita presidenta não deixava margem a dúvidas: as questões de gênero e o papel da mulher na sociedade receberiam especial atenção do governo que se inaugurava. O que nem todos esperavam, contudo, foi a forte reação negativa que aquele movimento desencadearia. A política de inclusão de grande parcela dos brasileiros até então esquecidos pelos governos, que passaram a ter acesso a itens mínimos que garantem os direitos de cidadania, a partir da eleição de Lula em 2002, como a alimentação, a educação e a saúde, foi taxada de populismo por seus adversários. As elites brasileiras nunca aceitaram o Partido dos Trabalhadores (PT) na Presidência e passaram a combater sistematicamente todos os atos do governo. Na década de 1970, Florestan Fernandes definiu em uma fórmula lapidar um traço característico do caráter brasileiro: o preconceito de ter preconceito. Algo mudou, porque hoje não são poucos os que perderam o pudor de afirmar publicamente que não gostam de pobres, pretos, gays ou nordestinos. Trata-se de algo assustador, pois uma vez que esse lixo todo saiu de dentro das pessoas, não voltará mais para dentro das suas consciências e estamos condenados a conviver com o ódio. No plano da luta política, esse movimento se traduziu pela recusa em aceitar o resultado da eleição de 2014. Tudo se passou como se a oposição tivesse ressuscitado a funesta fórmula com a qual Carlos Lacerda resumia os sentimentos das elites de então em relação à campanha de Getúlio Vargas à Presidência em 1950: “Getúlio não pode ser candidato. Se for, não pode vencer. Se eleito, não pode tomar posse. Se empossado, será destituído”. Horas apenas após a proclamação do resultado, os adversários passaram a contestar o veredicto das urnas e a trabalhar para derrubar o governo, demonstrando que não estavam mais dispostos a fazer parte do jogo democrático. Trata-se de um fato grave, pois rompeu-se o grande mistério, e que é por essa razão o maior encanto, da democracia, que é o consentimento dos perdedores. Ao longo da década de 1970, os países latino-americanos se acostumaram com golpes de Estado por meio dos quais o poder político era tomado por atores-chave da burocracia estatal: os militares. Recentemente, um movimento semelhante parece estar se reeditando, com a diferença que agora esses atores se encontram em instituições políticas fundamentais para a democracia, como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal, os Tribunais de Contas, que, por ironia do destino, tiveram seus poderes e independência garantidos e reforçados pelos governos republicanos e democráticos que ajudaram a derrubar. Com o apoio dos grandes conglomerados de mídia e desses atores que nunca receberam um voto sequer da população, o grupo político derrotado nas últimas eleições presidenciais se instalou no poder e passou a implementar um programa de governo impopular que foi derrotado várias vezes nas urnas. Golpe duplo, portanto. A desculpa do combate à corrupção não resiste a uma análise mais detida, pois, apesar da vida da presidenta afastada ter sido vasculhada, não foi encontrada nenhuma irregularidade, ao contrário dos seus adversários. Não se trata de quem deve ou não deve, ou de ter a consciência limpa, pois para isso deve haver um pressuposto de que a justiça funciona e é imparcial, de que podemos confiar nos juízes. E o que o cidadão comum enxerga é uma justiça que trata as diferentes situações de maneira desigual, que é incapaz de investigar e julgar para valer os responsáveis pelo massacre de Eldorado dos Carajás, de Corumbiara, pelos mortos do Carandiru, pela chacina da Candelária, pela de Vigário Geral, os crimes de maio de 2006, quando a polícia matou em alguns dias o que costuma matar em um ano, ou os crimes da ditadura. Passemos sobre o triste espetáculo das ignomínias, acusações mentirosas, julgamentos enviesados, traições de todo tipo, pois apesar dos jornais estarem hoje cheios delas, a história não lembrará quase nada dessa intriga toda, pois se já é difícil entender hoje o emaranhado de interesses espúrios que movem tantas acusações e manobras, daqui a algumas décadas será impossível contar. Os grandes movimentos é que permanecerão. E o que as gerações futuras lembrarão dessa história é a injustiça da derrubada de uma presidenta legitimamente eleita pelo voto popular. Dilma foi taxada de bandida e terrorista durante a campanha eleitoral e acabou por ser afastada como uma delinquente qualquer, pois ousou conceder alguns avanços para muitos brasileiros que sempre foram ignorados pelas elites. Ao conquistar a primeira medalha de ouro brasileira nos jogos olímpicos do Rio de Janeiro, em agosto de 2016, a judoca Rafaela Silva relembrou a humilhação a que foi submetida ao ser desclassificada na Olimpíada anterior: “Lembrando do sofrimento que passei em Londres, que me criticaram, que eu era uma vergonha para minha família, e hoje eu pude fazer todos os brasileiros felizes com essa medalha aqui dentro da minha casa. O macaco que tinha que estar na jaula em Londres hoje é campeão olímpico dentro de casa e hoje eu não fui uma vergonha para a minha família”. A mesma elite que agora acusa a Dilma despreza as Rafaelas. Ela só as aceita como empregadas domésticas e costuma dizer que são “parte da família”, quando na verdade as ignora, explora, xinga, prende, escraviza, estupra, e até mata, pois no fundo tem medo das Rafaelas, sobretudo quando elas lutam judô e ousam dizer o que pensam. Em 2002, Lula se tornou presidente com a promessa de erradicar a fome e de garantir a todos os brasileiros três refeições por dia. Buscava assim eliminar o abismo social identificado por Josué de Castro que, na década de 1950, assegurava que a humanidade se divide em duas categorias: a dos que têm fome e a dos que têm medo de quem tem fome. Passados treze anos os que têm fome assustam mais ainda, por que não têm mais fome apenas de comida, mas de dignidade, educação e respeito. Ao receber um prêmio, este ano, pelo filme Que horas ela volta?, no qual ela narra a história de Jéssica, a filha de uma empregada doméstica que entra na universidade, a cineasta Anna Muylaert confessou que achava a personagem um tanto quanto utópica demais, até o filme ser lançado e ela ouvir de vários jovens que eles se identificavam com a Jéssica, pois são a primeira pessoa nas suas famílias a entrar na universidade. Uma realidade que conhecemos bem na Unifesp, e que acompanha o padrão recente, de acordo com o qual um terço dos alunos atualmente nas universidades públicas são a primeira pessoa nas suas famílias a cursar o ensino superior. Precisamos nos aproximar das Jéssicas e dos Jéssicos que frequentam a universidade e ouvir o que eles têm a dizer. Afinal, como escreveu João Guimarães Rosa: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. Só assim poderemos enfrentar os tempos difíceis que se anunciam com coragem e esperança no futuro e nessa pátria desalmada, Brasil. Bruno Konder Comparato é docente na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) - Campus Guarulhos Sumário do número 14
Por editordci
Publicado em 07 November 2016 14:15 | Última modificação em 08 March 2023 17:39