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Publicidade doura a pílula da condição feminina

Anúncios e campanhas de marketing veiculadas em revistas brasileiras especializadas em negócios reforçam um universo idealizado e conservador em relação ao “sexo frágil”

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"Muito se diz sobre as transformações em relação à condição feminina, mas estudos revelam que, apesar de hoje serem mais escolarizadas e [de constituírem a] maioria nas universidades, as mulheres ainda ganham menos que os homens, encontram mais resistência para se inserirem no mercado de trabalho, ocupam postos menos privilegiados e estão concentradas em carreiras ditas femininas”, esclarece Elizabeth Queijo, pesquisadora do programa de pós-graduação em Letras da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) – Campus Guarulhos, responsável por trazer à tona essa temática em sua dissertação de mestrado.

Elizabeth discute as tensões em torno das relações sociais de sexo no universo corporativo, tendo em vista os anúncios em revistas de negócios. A análise foi feita a partir das publicações Exame e Você S/A, de grande circulação nacional, pertencentes ao Grupo Abril. A pesquisa, financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e apresentada no segundo semestre de 2016, foi realizada sob orientação de Anderson Salvaterra Magalhães, docente do Departamento de Letras da EFLCH/Unifesp. O material analisado totalizou 3.570 anúncios, coletados em 75 edições de ambos os periódicos, cuja veiculação ocorreu entre abril de 2013 e abril de 2015. 

As revistas de negócios fazem parte da realidade social do mundo do trabalho, observa Elizabeth. As relações entre homens e mulheres são apresentadas por essas publicações, não apenas por meio do conteúdo jornalístico propriamente dito, mas também por meio das peças de publicidade e propaganda. “Os anunciantes, no caso, participam da construção de valores simbólicos para a satisfação das necessidades materiais e, principalmente, das necessidades sociais do público, construindo subjetividades, ao mesmo tempo em que refletem tendências já existentes na sociedade”, explica a pesquisadora. “Há um ponto em comum nesse movimento recíproco que achamos interessante analisar: a publicidade produz valores que influenciam o cotidiano das pessoas, porém é a partir desses valores que a própria publicidade reproduz suas palavras e imagens.”

Motivações pessoais, além do interesse acadêmico, despertaram a atenção de Elizabeth. “A ideia surgiu a partir da experiência em um ambiente corporativo ainda refratário a algumas transformações, quer fosse pela persistente diferença salarial, quer fosse pelos cargos de liderança, que se restringiam ao marketing e aos recursos humanos, considerados como áreas de apoio ao negócio. Não posso deixar de mencionar as piadas [que circulavam] sobre a contratação ou a promoção de alguma funcionária, adjetivos como ‘mandona’ ou ‘mulher-macho’ [dirigidos] às gestoras, exigências estéticas e manifestações de assédio sexual. A vivência profissional nesse espaço como mulher apontava para um cenário complexo e cheio de detalhes.”

Mulheres ganham 76% pelo mesmo trabalho feito por homens

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 207.160.000 pessoas vivem atualmente no Brasil. Desse total, 50,65% são mulheres. Apesar de, em termos percentuais, a igualdade entre os sexos praticamente existir na população, esse valor não se reflete nas relações sociais de gênero, sobretudo no mundo dos negócios. Na presença ou na ausência de crise, as mulheres continuam trabalhando mais e recebendo menos por isso.

O cenário é expressivo em números: em 2015, o rendimento médio das mulheres equivalia a 76% da renda dos homens. Por semana, foram 34,9 horas dedicadas ao emprego e 20,5 horas, às tarefas domésticas. Nesse último quesito, a jornada masculina foi de apenas dez horas, ou seja, a metade do tempo das mulheres. Essas informações estão contidas na Síntese de Indicadores Sociais: uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira (SIS - 2016), divulgada em 2016 pelo IBGE e que traz dados do período entre 2005 e 2015.

Na população com até quatro anos de estudo, o salário-hora das mulheres – em 2015 – correspondeu a 90% do valor auferido pelos homens. Para a categoria mais escolarizada, com 12 anos ou mais de estudo, tal comparativo foi de 68,5%. À medida que avançou o nível escolar, aumentou também a desigualdade entre os gêneros.

Os dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em março de 2017, no âmbito do projeto intitulado Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, apontaram que nos últimos vinte anos (1995-2015) o índice de presença e participação feminina no mercado de trabalho oscilou entre 54-55%. Especificamente em 2015, registrou-se que 55,3% das mulheres eram economicamente ativas (ocupadas ou em busca de ocupação). Por sua vez, a proporção de homens ativos, nesse ano, foi de 78,3%. 

Vale destacar o crescimento de lares chefiados por mulheres. Em 1995, os domicílios que tinham as mulheres como pessoa de referência alcançavam 23%. Vinte anos depois, esse índice saltou para 40%. Do mesmo modo, o patamar de famílias em que as mulheres não tinham cônjuge, mas possuíam filhos, permaneceu elevado: 16,35% em 2015, conforme relatório da SIS - 2016.

Dois gráficos, o primeiro deles mostra como o rendimento médio de homens, seja em trabalho formais ou informais, é superior ao de mulheres. O segundo gráfico mostra como média de horas semanais trabalhadas, ao somar o trabalho e os afazeres domésticos, é maior entre as mulheres

Relações sociais de sexo no mundo do trabalho: dissimetrias

Elizabeth queijo - a pesquisadora está com vários exemplares das revistas

Elizabeth Queijo e seu objeto de pesquisa

A dissimetria entre homens e mulheres pode ser exemplificada pela publicidade de um banco. A imagem apresenta seis personagens (duas mulheres e quatro homens), sugerindo que cada um deles representa diferentes ambientes de trabalho e profissões. Dois deles são nitidamente cozinheiros, mas, pelas roupas, conclui-se que a mulher é uma auxiliar e o homem é o chef. Os outros rapazes estão caracterizados em espaços mais valorizados socialmente (escritório, escola de idiomas e clínica veterinária), enquanto a segunda mulher está associada a um salão de beleza.

Outro anúncio publicitário reproduz a capa de uma das edições da revista Você S/A, cuja reportagem principal – identificada pelo título As Vantagens de Ter Duas Carreiras – também aborda as diferenças específicas que caracterizam as atividades profissionais exercidas por homens e mulheres. O anúncio é ilustrado por uma faixa vermelha que guarnece a parte inferior da página, na qual se lê: “Quando a jornada dupla vale a pena”. No fac-símile da capa destaca-se, ao centro, a fotografia do diretor de tecnologia de uma loja de artigos esportivos on-line, que – após o expediente – é professor de mergulho (segundo informa a legenda). A característica em foco é a menção aos termos dupla jornada. No caso do diretor, por tratar-se de trabalho convencional, uma atividade ocorre após o expediente da outra. Em relação às mulheres, entretanto, a dupla jornada consiste no fato de as obrigações familiares e domésticas – pelas quais são, em grande parte, responsáveis – atravessarem o curso das tarefas profissionais. 

Há discriminação até entre as representantes do próprio gênero feminino. Alguns anúncios expõem a imagem de diferentes modelos, todas jovens, loiras, de olhos azuis e magras, inclusive os de uma mesma marca de roupas. “A distinção pode ser percebida visualmente na totalidade das propagandas veiculadas no período observado, isto é, trata-se majoritariamente de enunciados com mulheres não negras”, ressalta a pesquisadora. Por outro lado, as referências a comunidades, famílias de baixa renda ou pessoas que buscam o empreendedorismo apontam quase sempre para um recorte de raça/etnia, ou seja, para as mulheres negras. “Parece pertinente dizer que determinados traços físicos, bem como atribuições que sugerem classe social mais baixa, limitam ainda mais as possibilidades de representação de avanço atreladas ao tipo de imagem de mulher que foge do modelo legitimado pela sociedade.”

Entre os valores conferidos às mulheres, os principais pontos abordados são: a vinculação com a feminilidade e sensualidade, a busca da beleza física (corpo perfeito e vestimenta impecável), a representação da mulher sob o olhar do homem, a nudez implícita, as atribuições comuns ao gênero e o desconhecimento de tarefas impostas como masculinas. “Nota-se a presença de imagens femininas quantitativa e qualitativamente menos expressivas; mesmo quando relacionadas ao ambiente de trabalho, são homogêneas e utilizam-se da beleza e do erotismo. As valorações, como os conceitos teóricos de separação e hierarquização do trabalho, estão cristalizadas e organizam a estrutura da cadeia discursiva, não admitindo qualquer mudança e fundindo-se como fenômenos da vida de forma implícita”, pontua.

Os enunciados publicitários integram, portanto, os discursos da sociedade e funcionam como vetores de transformação nas relações sociais de sexo quando propõem um avanço em relação às mulheres e ao mundo do trabalho – como a representação daquelas que buscam ser empreendedoras. Por outro lado, tentam ainda estabilizar valores cristalizados e conservadores – o modelo de mulher que consegue conciliar profissão e tarefas do lar, por exemplo. “É preciso reconhecer que as diferenças ainda se sustentam para que possamos superar essas dissimetrias. Declarar que as mulheres avançam não faz sentido se avanços não fossem considerados necessários. A igualdade social não se confunde com o não reconhecimento de diferenças entre homens e mulheres; ao contrário, a busca por uma igualdade exige o reconhecimento dessas diferenças. Os resultados são um tanto pessimistas, mas uma ‘aposta’ teórica da pesquisa no campo discursivo é a ideia do devir como algo transformador”, finaliza.

Uma ilustração organizada com a figura do yan yang, em um dos lados estão objetos domésticos e no outro, objetos de mundo corporativo

Desvalorização das “tarefas domésticas” revela perfil conservador da sociedade

As mulheres nunca estiveram fora do mundo do trabalho. Nas últimas décadas, muitas deixaram a vida de donas de casa. Na maior parte dos casos, entretanto, as mulheres tiveram de combinar as tarefas domésticas, familiares e profissionais com o serviço assalariado ou não. Só que isso nem sempre foi devidamente reconhecido e levado em consideração pelas estatísticas.

“No Brasil, cuja formação deitou raízes em um sistema escravocrata, ainda se ignora a força de trabalho feminina empregada pelas mulheres negras – escravizadas ou livres, brasileiras ou africanas”, assegura Elizabeth Queijo. As diferenças sociais, em especial as relacionadas à raça, engendraram tensões que atingem ambos os gêneros. No caso dos homens negros, o conflito é fundamentado em um prestígio social inferior quando comparado ao do homem não negro, e os efeitos da desigualdade aparecem até mesmo na comparação com as mulheres brancas. Dessa forma, a autora reforça a necessidade de entender as múltiplas características e questões entrepostas nas relações de sexo.

A divisão sexual de trabalho, mesmo que modulada histórica e socialmente, revela que os homens são destinados prioritariamente à esfera produtiva, enquanto as mulheres, à esfera reprodutiva. As funções de forte valor social – sejam políticas, religiosas ou militares, entre outras – são reservadas à parcela masculina da população. Há, assim, a apresentação de dois conceitos: o de separação, pressupondo o que é dever do homem e da mulher, e o de hierarquização, valorizando o trabalho de um em detrimento do do outro.

Há ainda o modelo de conciliação, associado recorrentemente à expressão dupla jornada, que visa combinar as tarefas domésticas e familiares com a vida profissional. Essas responsabilidades são atribuídas, de forma implícita, às mulheres. O cuidado com os filhos e com a casa, entretanto, é visto como desvantagem pelo mercado de trabalho. Diante desse cenário, surge o modelo de delegação, que dirige as referidas atividades a outras pessoas – faxineiras, empregadas ou babás.

“As identidades – assim construídas – são fundamentadas em valores sociais e culturais, inscritos historicamente, determinando lugares e papéis compreendidos como de homens ou de mulheres”, resume a pesquisadora.

Dissertação de mestrado e artigos relacionados:

QUEIJO, Maria Elizabeth da Silva. Imagens de mulher e o mundo do trabalho: uma análise discursivo-dialógica de enunciados publicitários em revistas de negócios. 2016. 292 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos (SP).

RETRATO das desigualdades de gênero e raça – 1995 a 2015. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2017. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/170306_retrato_das_desigualdades_de_genero_raca.pdf >. Acesso em: 16 mar. 2017.

SÍNTESE de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira – 2016. Rio de Janeiro: IBGE, 2016. 146 p. (Estudos e Pesquisas. Informação demográfica e socioeconômica, n. 36). Disponível em: < http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv98965.pdf >. Acesso em: 16 mar. 2017.