O conceito de perda ambígua é o foco de interesse de Celina Daspett, membro do Grupo de Estudo e Pesquisa Família e Comunidade (Gepfac) da Unifesp. Foi criado pela doutora estadunidense Pauline Boss e designa o sentimento decorrente de uma situação na qual um ente querido está fisicamente e/ou psicologicamente ausente. A perda não é concretizada ou confirmada, o que dificulta o processo de luto de um ou mais membros da família. Em outros termos, o luto não é realizado, prolonga-se indefinidamente e pode comprometer a saúde mental dessas pessoas.
Celina é graduada em Psicologia pela Universidade de Guarulhos, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e doutora em Ciências, com tese defendida na Escola Paulista de Enfermagem (EPE/Unifesp), orientada por Ana Lúcia Horta. A pesquisadora relata que o conceito despertou seu interesse após duas décadas de estudos sobre luto.
Crianças sequestradas, desaparecidos políticos e portadores de Alzheimer são os casos mais comuns de perda ambígua na literatura. Visto a lacuna nos estudos realizados sobre familiares de adictos de drogas, Celina adotou a ausência do dependente de narcóticos como enfoque da tese. A intenção era descobrir “quais as vivências, quais as crenças, quais os valores que estão intrínsecos a essa relação e principalmente quais foram as estratégias de enfrentamento que as famílias encontraram para lidar com essa situação”, complementa a pesquisadora.
Para a metodologia da pesquisa, Celina optou por entrevistas com sete famílias que relataram suas experiências. A escolha da forma oral como registro se deu de modo a ter uma ideia de contexto, de processo e de como as comunicações e relacionamentos estavam presentes no núcleo de cada casa.
O maior obstáculo da pesquisa foi chegar até as famílias. Frente à dificuldade de coletar dados na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, os acessos às famílias se deram por meio de instituições que cuidam de dependentes químicos e unidade básica de saúde, que ajudaram na busca dos familiares para a realização das entrevistas. Os participantes estavam bastante apreensivos. Em decorrência dos traumas que viveram, muitas vezes tinham vergonha de suas histórias e medo de julgamentos. Além disso, era frequente que essas pessoas não se sentissem merecedoras de ajuda e tratamento.
O aspecto em comum entre as famílias, constatado a partir desses encontros, foi a angústia de viver um problema que, aparentemente, não tem solução. Há um desgaste dos familiares a cada nova tentativa de internação e de criação de estratégias para fazer o dependente se recuperar, o que em muitos casos não dá certo. Ao mesmo tempo, dentro da própria ambiguidade, há uma esperança que os motiva a não desistir e a alimentar uma expectativa de que a qualquer momento seu ente querido venha a aceitar algum tipo de tratamento e consiga sair da dependência.
Quando um de seus membros é um dependente químico, a família é afetada de todas as formas possíveis. A questão dos papéis familiares fica muito abalada, seja por uma aproximação, por um cuidado excessivo ou até mesmo pelo contrário, a negligência dos pais. A turbulência gerada pelo adicto impacta toda a dinâmica dos que o cercam.
A pesquisadora afirma que foi possível verificar, nas casas das famílias, o vazio revelado pela ausência de bens materiais que pertenciam aos entes queridos. Nas paredes do domicílio era comum ver buracos nas estantes de objetos que foram trocados por drogas entre as idas e vindas do dependente à casa. A mobília era reflexo da história daquelas pessoas e expressava seu vazio emocional.
Uma outra constatação da pesquisa foi a negligência no cuidado com essas famílias. Há uma falta de apoio. Segundo Celina, era constante nas histórias contadas pelos entrevistados a dificuldade de não ter com quem falar, como falar, de não ter um espaço para criar estratégias para enfrentar o problema. A reincidência desse sentimento nos depoimentos comprova a relevância do estudo e a necessidade de criar oportunidades para que essas pessoas tenham um espaço de fala e de troca.
Celina afirma que as políticas públicas ainda são insuficientes, por focarem apenas no indivíduo. “Essa pessoa não vive só, ela tem um contexto familiar, ela tem um contexto social e isso tem que ser olhado de uma forma ampla. Às vezes a questão da droga é transgeracional; há um comportamento da dependência se repetindo na família com substâncias diferentes”, afirma. E ressalta que o conhecimento, por si só, embora necessário, não muda o comportamento. Os usuários, não raro, se sentem no controle e acham que a qualquer momento podem parar de utilizar os narcóticos.
A pesquisadora aponta que o tipo de assistência que pode ser dada à família no contexto da perda ambígua de modo a amenizar ou trabalhar esse processo estressante é justamente dar voz a essas pessoas e legitimar o seu sofrimento. “A partir do momento em que elas se sentirem acolhidas e contidas na dor, isso vai facilitar na busca de estratégias para lidar com isso. Não somos nós que vamos dar, mas podemos oferecer condições para que eles criem possibilidades de enfrentar esses problemas”, finaliza.
Tese relacionada:
DASPETT, Celina. Perda ambígua na família desenvolvida a partir da ausência do dependente químico. 2016. 113 f. Tese (Doutorado em Ciências) - Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2016.