Os números impressionam: 16,6% dos brasileiros já foram vítimas de violência doméstica; 13% já testemunharam agressões entre seus pais durante a infância e, desses, quase 60% foram vítimas de violência física direta, quando crianças, dentro de suas próprias casas. Essas são as principais conclusões de um recente estudo produzido por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp).
Como parte de seu pós-doutorado, orientado por Ronaldo Laranjeira, professor do Departamento de Psiquiatria, Clarice Sandi Madruga debruçou-se sobre uma questão contemporânea de extrema relevância: as possíveis causas das altas taxas de violência doméstica no Brasil. Considerando dados do 2° Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), eles avaliaram a relação entre consumo de entorpecentes, contato com violência doméstica durante a infância e o envolvimento futuro em relacionamentos pautados pela violência.
Foram coletados dados sobre exposição à violência na infância e experiências de agressão pelos pares de 4.607 pessoas com idade igual ou superior a 14 anos. Considerando a amostra estudada, os autores do artigo concluíram que, independentemente do indivíduo ter sido vítima de violência na infância, só o fato de testemunhar agressões entre os pais ou cuidadores aumenta as chances de se envolver em relacionamentos abusivos na vida adulta. O modelo de transmissão entre gerações, segundo os autores, foi o escolhido para explicar a questão.
Os altíssimos índices de violência na infância detectados pelo levantamento e a gravidade das consequências mostram a importância da elaboração de estratégias de prevenção para quem realmente precisa: as vítimas de experiências adversas prematuras. “Testemunhar agressões físicas dentro da família pode ser tão prejudicial para as crianças quanto sofrer a violência, e ambos estão associados com transtornos de humor e consumo de drogas. “Tanto o consumo de cocaína quanto de álcool são parte desta trajetória, que vai do testemunho da violência em casa até a experiência de ser vítima de violência doméstica na vida adulta”, afirma Clarice.
Violência abrange relacionamentos íntimos
A violência entre parceiros íntimos é um dos principais problemas de saúde pública em todo o mundo, principalmente nos países em desenvolvimento, com taxas globais que variam de 15% no Japão a 71% na Etiópia. Estima-se que mais de um terço das mulheres tenham experimentado tanto a violência do parceiro íntimo com a violência sexual de não parceiro.
Dada a dimensão do problema, a estudante Elizabeth Ally, sob a supervisão da orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Psicologia Médica, Clarice Madruga, comparou dados compreendidos entre os anos de 2006 (promulgação da lei Maria da Penha) e 2012. Ambas analisaram as taxas de violência entre parceiros e investigaram sua relação com o perfil sociodemográfico e o uso de substâncias (com dados do Lenad).
Aos entrevistados do 1º Lenad (2006) e 2º Lenad (2012) foram feitas nove perguntas sobre a ocorrência de diferentes tipos de comportamentos violentos nos últimos 12 meses, incluindo violência leve (jogar alguma coisa, empurrar, agarrar, estapear) e violência grave (chutar, morder, bater, tentar acertar com alguma coisa, queimar ou jogar água quente, forçar ao sexo, ameaçar com uma faca ou arma, usar uma faca ou arma). Inicialmente os entrevistados foram questionados sobre serem ou não autores desses atos contra seu(sua) parceiro(a) e, em seguida, foram solicitados a relatar se seu(sua) parceiro(a) tinha cometido esses mesmos atos contra eles.
Mulher hoje agride mais
O número de mulheres vítimas de violência doméstica reduziu quase 30% desde 2006, passando de 8,8% para 6,3% da população brasileira. Já em relacionamentos onde os homens são as vítimas de violência, houve uma redução menor, de 22%, no percentual de mulheres que atuam como agressoras (7,7% para 6%).
Quanto à autoria, o período revelou uma pequena diferença entre os sexos: o número de mulheres que perpetraram violência em relação ao homem foi de 12%, enquanto que o de homens que praticaram o mesmo foi de 9,2%. Comparadas aos homens, as mulheres também apresentaram taxas mais altas de prática de agressões em relacionamentos marcados pela violência mútua (3,3% entre as mulheres e 2,6% entre os homens).
De modo geral, não foi possível estabelecer uma associação significativa entre gênero e perfil socioeconômico. Os homens mais velhos e escolarizados foram os menos propensos a efetuar violência; no caso das mulheres, a idade avançada também coincidiu com menores chances de praticar agressões. Entretanto, chama a atenção a diminuição da vitimização acentuada entre a classe C (11,3% em 2006 para 7,8% em 2012) e da perpetração entre homens e participantes de classe média baixa, com apenas o ensino médio completo.
A relação entre o consumo de substâncias e violência foi expressiva, especialmente entre os homens que praticam as agressões: cerca de 45% dos participantes com esse perfil foram identificados como bebedores compulsivos. Entre os enquadrados na violência bidirecional, metade da amostra apresenta consumo excessivo de álcool. “A violência mútua, nesse caso, mais do que duplicou as chances de beber em demasia”, explica Clarice.
Os resultados revelam, de modo geral, a diminuição da vitimização da mulher em relacionamentos marcados pelo abuso. Para a pesquisadora da Unifesp, o fenômeno sugere que a lei Maria da Penha pode ter tido um impacto positivo ao promover uma redução da violência contra as mulheres no Brasil. Porém, conforme alerta Clarice, as taxas de perpetração ainda são altas entre elas, mostrando a necessidade de campanhas de prevenção que busquem o combate à violência doméstica de forma geral, não se limitando a especificidades de gênero.
“Em relacionamentos marcados pela agressão mútua, o revide de mulheres atacadas pelo parceiro pode explicar as altas taxas de perpetração de violência entre o gênero. Além disso, é possível afirmar que o uso de substâncias é fortemente associado à violência bidirecional, evidenciando o quanto estratégias de combate ao uso de substâncias podem, por tabela, diminuir casos de violência doméstica", pondera a pesquisadora.
Outro ponto de relevância, segundo Elizabeth, foi a prevalência da vitimização em relacionamentos abusivos entre as camadas mais jovens e menos escolarizadas da população, o que pode indicar que as iniciativas de prevenção tiveram menos impacto nesse setor da sociedade.
As autoras reforçam que iniciativas de prevenção precisam ser amplificadas para ambos os gêneros e buscar extinguir a violência doméstica como um todo, envolva ela crianças ou parceiros íntimos. “O conhecimento da magnitude da violência entre parceiros no Brasil e os fatores associados a esse problema devem contribuir para o desenvolvimento de intervenções mais eficazes. É fundamental que se comece a implementar medidas tanto de prevenção quanto de assistência às vítimas de violência doméstica no país, sem deixar de lado a ampliação da discussão sobre a igualdade de gênero", finalizam as pesquisadoras.
A vida como ela é
Reproduzimos, em seguida, dois depoimentos de vítimas de agressão doméstica, uma mulher e um homem, praticada pelos respectivos cônjuges. Os nomes foram preservados.
Depoimento de F.
Ex-companheiro: J.
Fui casada com J., que em alguns momentos já foi agressivo comigo. Nos divorciamos e, tempos depois, voltamos a namorar, mas as coisas não caminharam bem novamente e terminamos de vez. Mais à frente, comecei a namorar outra pessoa, até então escondida, com medo de retaliações. Mesmo assim, J. descobriu e passou a me perturbar de todas as maneiras: mensagens por celular, e-mail, telefone pessoal e corporativo, e até pessoalmente em meu trabalho.
Quando ele bloqueou meu celular e invadiu meu e-mail, descobrindo que eu moraria junto com meu novo parceiro, tudo piorou: todos os contatos passaram a ser em tons de ameaça física explícita, envolvendo meu namorado, que também recebia mensagens e ligações com informações que tentavam denegrir minha imagem e de minha família perante ele. E os textos de ameaça eram do tipo “vou quebrar todos os ossos”, “vou mandar seu namoradinho ao hospital”, “vou aí na sua casa pegar vocês”, e outras piores.
Tudo só se resolveu quando decidimos registrar um Boletim de Ocorrência de ameaça, juntando todas as mensagens e e-mails recebidos até então. A polícia ouviu as partes, julgou a denúncia procedente e encaminhou ao Ministério Público, que resolveu processar J. Após a audiência preliminar, foi celebrada, então, uma transação penal e, depois disso, nunca mais J. nos procurou.
Depoimento de L.
ex-companheira: S.
Namorei S. por cinco anos, entre 2009 e 2014. Ela tinha dois filhos anteriores ao nosso relacionamento: um de três anos (que mora com ela) e o outro de 14, que mora com a avó. Quando passamos a morar juntos, comecei a perceber que ela sempre estava muito nervosa, irritada e implicante. Desde o início, ela usava o filho mais novo para me convencer a fazer coisas que eu não concordava ideológica e moralmente. Ao passo que procurava dar uma vida digna a eles, S. mudou de emprego sete vezes no prazo de cinco anos.
Certa vez, tivemos uma briga à noite que durou até o outro dia. Sem a menor razão, ela tentou me agredir com tapas e eu a segurei nos pulsos tentando acalmá-la, sem sucesso. Ela me acusava de trair, enganar e tudo o mais. Foram centenas (sem exagero) de brigas com total falta de respeito e educação. Por causa dessas brigas, desde então, passei a chegar atrasado no trabalho com grande frequência.
Minha própria família questionou o motivo pelo qual permanecia no relacionamento e chegamos à conclusão de que o motivo central dessa permanência era o amor pelo filho dela. Ciente disso, decidi conversar com ela sobre a separação definitiva no dia 22 de julho de 2014. Resultou em uma discussão que durou das 19h às 5h do dia seguinte. Durante esse desentendimento, que ocorreu na frente do filho dela, S. bateu nele, jogou todas as minhas roupas na sala e quebrou móveis.
Saí de casa, fui morar com minha irmã, e aluguei outra casa menor para S. e seu filho durante três meses. Ela passou a me seguir perto do trabalho e a fazer ronda na porta da casa da minha irmã, da minha tia e dos meus amigos. Pedia dinheiro para meu pai, meus amigos e minha família, no intuito de me acusar de não fornecer assistência a ela.
Quando, pela última vez, tentei por fim no impasse por meio de uma conversa em uma lanchonete, ao sairmos de lá fui surpreendido no estacionamento: ela avançou com o carro, junto ao seu filho, na tentativa de me atropelar. Não hesitei em ligar para a polícia e registrar um Boletim de Ocorrência. Desde então, tenho procurado manter distância e me manter no anonimato em relação a ela.
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ALLY, Elizabeth Z.; LARANJEIRA, Ronaldo; VIANA, Maria C.; PINSKY, Ilana; CAETANO, Raul; MITSUHIRO, Sandro; MADRUGA, Clarice S. (2016). Intimate partner violence trends in Brazil: data from two waves of the Brazilian National Alcohol and Drugs Survey. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 38, n. 2, p.98-105, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbp/v38n2/1516-4446-rbp-38-02-00098.pdf >. Acesso em: 27 mar. 2017.
MADRUGA, Clarice S.; VIANA, Maria Carmen; ABDALLA, Renata Rigacci; CAETANO, Raul; LARANJEIRA, Ronaldo. Pathways from witnessing parental violence during childhood to involvement in intimate partner violence in adult life: The roles of depression and substance use. Drug Alcohol Review, v. 36, n. 1, p. 107-114, jan. 2017. Disponível em: <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/dar.12514/full >. Acesso em: 27 mar. 2017.