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Contra o crime, incluir e educar

Estatuto da Criança e do Adolescente, resultado de discursos e práticas que se organizaram em torno do debate sobre criminalidade urbana nos últimos 100 anos, enfrenta novos desafios, às vésperas de entrar na sua fase “madura”

Adolescentes em uma sala de aula de um centro socioeducativo

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei que sistematiza direitos inatos de cidadãos com até 18 anos de idade (em casos específicos, até os 21 anos), completou 16 anos em julho deste ano. Próximo à sua “maioridade”, concentra diretrizes cuja aplicação no Brasil encontra-se distante de sua maturidade, influindo indiretamente sobre o quadro de violência urbana. A constatação advém de artigo científico publicado em 2015 por Liana de Paula, professora do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) – Campus Guarulhos.

Seu trabalho, intitulado Da “Questão do Menor” à Garantia de Direitos – Discursos e Práticas Sobre o Envolvimento de Adolescentes com a Criminalidade Urbana, aborda discursos e práticas, ao longo do século XX, que se organizaram em torno do fenômeno do envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana no município de São Paulo. A partir de definições quase centenárias, a pesquisadora vai além e afirma: a pobreza, definida no início do século XX principalmente como não trabalho, ganhou ressignificações e reinterpretações e pode ser hoje definida também como lugar da ausência de direitos.

A pesquisa revela que o envolvimento de adolescentes com atos ilícitos nas ruas torna-se um problema social no Brasil a partir do início do século passado, período marcado por transformações sociais, políticas e econômicas. Liana afirma que, na capital paulista, a modernização traduzia-se em industrialização e urbanização. “Muitos pais e mães que se dispunham a trabalhar nas fábricas e oficinas, quando não levavam seus filhos junto consigo, deixavam-nos sozinhos durante a jornada, uma vez que não havia um aparato institucional público ou privado capaz de absorver a demanda por creches ou escolas”, pondera.

Para as autoridades da época, a fundação do Instituto Disciplinar e da Colônia Correcional de São Paulo (1902) foi a solução encontrada para o recolhimento de crianças e adolescentes considerados abandonados ou envolvidos em ato ilícito. “O instituto previa o uso de técnicas de ginástica, educação e instrução militar. Contudo, a prática acaba por se desviar da teoria - as jornadas de trabalho agrícola e os castigos físicos em internados tornaram-se recorrentes”, discorre a pesquisadora.

O recolhimento de menores foi ampliado a partir de 1964, ano de elaboração da Política Nacional do Bem-Estar do Menor (Pnbem). Embasada na emergente teoria da marginalização social, essa política reforçava a intervenção focada no abandono, colocado como causa do envolvimento de jovens com a criminalidade urbana. A nova configuração fundamenta, na década seguinte, a redação do Segundo Código de Menores (1979) e a criação da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor de São Paulo (Febem-SP) com seus complexos. Porém, a correção de condutas mostra-se novamente um objetivo distante: a lotação dos complexos e as práticas de tortura e espancamento são institucionalizados.

Liberdade assistida: uma nova abordagem

A partir do final da década de 1970, a liberdade assistida passa a ser discutida e aplicada. Segundo a pesquisadora, a Pastoral do Menor e os movimentos sociais adquirem papéis centrais na defesa dos direitos de crianças e adolescentes pobres, exercendo grande influência na elaboração do ECA, em 1990. “A articulação entre Igreja Católica e sociedade civil favorece novas propostas, como estímulo à busca de emprego, volta à escola, utilização do posto de saúde e retorno à família. Conclui-se que a internação é uma medida ineficaz, pois não há como ensinar o adolescente a viver em sociedade tirando-o desse meio”.

Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente se contrapõem à antiga premissa de que jovens deveriam ficar sob a tutela do Estado. “O ECA, particularmente, marca uma ruptura dos debates centrados na associação exclusiva entre a questão do menor e a marginalização social. A pobreza é ressignificada como resultante da violação de direitos”.

Novo status legal e descentralização

Os movimentos sociais de defesa de direitos desses jovens adquirem, nos últimos 20 anos, um status de legalidade e de formalidade. Acompanha essa mudança a reforma do Estado, que traz como principal consequência a descentralização político-administrativa. Em São Paulo, a municipalização e o estabelecimento de convênios com as organizações da sociedade civil se consolidam a partir de 1990. “O atendimento de crianças e adolescentes considerados abandonados ou em situação de risco deixa de ser oferecido por instituições públicas estaduais vinculadas à Febem-SP e passa a ser realizado por meio de convênios firmados pelo município com organizações da sociedade civil”, explica a pesquisadora.

Esse novo contexto, para Liana, veio com novos desafios. “A liberdade assistida trouxe um novo olhar à questão do adolescente em conflito com a lei. Por outro lado, se trata de uma medida difícil de ser aplicada e, com a municipalização, perde-se muito da expertise estadual. O atendimento ficou pulverizado e, em muitos casos, faltam boas decisões por parte das secretarias de assistência social”, ressalta.

Um novo paradigma

Segundo Liana, a aproximação entre assistência social e atendimento da liberdade assistida, em São Paulo, recoloca a associação entre pobreza e criminalidade: a marginalização é substituída pela exclusão social, estabelecendo-se um novo trinômio entre pobreza, exclusão social e criminalidade. Surge um novo paradigma, que sugere a inclusão social por meio do acesso a direitos.

“Houve muitos avanços. No começo do século passado, acreditava-se que o afastamento da família era o que levava esses jovens a se envolverem com o crime. No entanto, a própria família pode estar em uma situação de pobreza. Políticas públicas que permitam a essas famílias saírem dessa condição pode diminuir a reincidência”.

Para a pesquisadora, porém, o acesso a direitos exige o respeito ao corpo dos adolescentes. “Historicamente, no Brasil, o corpo do criminoso é considerado incircunscrito, ou seja, como define a autora Teresa Caldeira, manipulável e aberto a intervenções e castigos dolorosos. Essa concepção e sua relação com a deslegitimação dos direitos civis são um ponto fundamental para entender as contradições entre expansão e desrespeito aos direitos de cidadania no Brasil, bem como seus impactos na violência urbana”, defende. 

Sua opinião é a de que precisa haver uma discussão mais profunda sobre o sistema de proteção. “Há um número grande de jovens em situação de violação e privação de direitos. Muitos que são atendidos pela Fundação Casa, por exemplo, fazem seu primeiro cartão do SUS quando dão entrada em uma unidade; esses jovens não precisariam cometer uma infração para só então se tornarem cidadãos de fato. Nesse sentido, é necessário aprimorar o ECA como o conhecemos hoje”.

O avanço deveria ser acompanhado de uma reestruturação do sistema educacional. “Ainda que tenham a oportunidade de inclusão e afastamento do crime, esses adolescentes sofrem com uma defasagem escolar muito grande. Quando os (re) inserimos na escola, as chances de continuarem estudando e posteriormente ingressarem no mercado de trabalho são muito pequenas. É preciso haver uma política de atendimento a esses adolescentes no meio escolar”, finaliza.

Artigos relacionados:

BRAGA, Luciana L.; FIKS, José Paulo; MARI, Jair J; MELLO, Marcelo Feijó. The importance of the concepts of disaster, catastrophe, violence, trauma and barbarism in defining posttraumatic stress disorder in clinical practice. BMC Psychiatry, v. 8, n. 68, 12 ago. 2008. Disponível em: < http://bmcpsychiatry.biomedcentral.com/articles/10.1186/1471-244X-8-68 >. Acesso em: 30 set. 2016.

PAULA, Liana de. Da “questão do menor” à garantia de direitos: discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana. Civitas, v. 15, n. 1, p. 27-43, jan./mar. 2015. Disponível em:< http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/16937 >. Acesso em: 30 set. 2016.

PAULA, Liana de. Práticas Socioeducativas e garantia de direitos: pensando a (des)constituição do sujeito de direitos a partir da internação de adolescentes. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPOCS, 39., 2015, Caxambu. Anais... Caxambu: Anpocs, 2015. p. 1-18. Disponível em: < http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=9784&Itemid=461 >. Acesso em: 30 set. 2016.


Tese relacionada:

PAULA, Liana de. Liberdade assistida: punição e cidadania na cidade de São Paulo. 2011. 275 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-07102011-145637/pt-br.php >. Acesso em: 30 set. 2016.