Entre 1980 e 2014, foram registradas no Brasil 967.851 mortes por arma de fogo, 85,8% das quais foram resultantes de agressão com intenção de matar, indica o Mapa da Violência 2016, coordenado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, da área de estudos sobre violência da Faculdade Latino–Americana de Ciências Sociais. A violência, quando não mata, deixa sequelas imensuráveis às vítimas e seus familiares. Uma delas é o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), distúrbio psiquiátrico caracterizado por sintomas físicos, psíquicos e emocionais decorrentes da experimentação ou do testemunho de atos violentos ou situações traumáticas, principalmente as que representam ameaça à vida.
José Paulo Fiks, psiquiatra e coordenador do Grupo de Pesquisa Qualitativa em Violência e Saúde Mental do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (Prove) do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo, esclarece que a estimativa do TEPT é que ele atinja até cerca de 20% das vítimas de violência. “No entanto, esse índice varia muito entre comunidades”.
De acordo com ele, em países em situação de paz, ou seja, nos que não há conflitos generalizados, a média de incidência de quadros de TEPT varia de 12% a 20% de casos após a exposição a um evento potencialmente traumático. Já para situações de conflito ou eventos catastróficos a incidência pode chegar a 35% a 40%. “Mas posso afirmar que esses números ainda não são exatamente corretos”.
Entre as explicações para que uma pessoa não desenvolva o TEPT estão os fatores de proteção que podem ser genéticos, religiosos, educacionais, de maternagem (pessoas com boa proteção na infância são mais resilientes), apoio social e ação imediata dos serviços de saúde. “Tudo isso dá uma boa base para que o TEPT não se desenvolva. Mas não há garantias. Não há uma ‘vacina’”, explica Fiks.
Mistura de sentimentos
José Paulo Fiks
Marcelo Feijó de Mello
Mas como a vítima enxerga as repercussões psicológicas da experiência sofrida? Para entender isso, Fiks e o também psiquiatra e chefe do Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp, Marcelo Feijó de Mello, analisaram 20 indivíduos, com idades entre 18 e 65 anos, de ambos os sexos, vítimas de violência, tais como roubo, rebelião, sequestro, violência doméstica e testemunha de suicídio. Nenhum deles tinha histórico de abuso de substâncias psicoativas, distúrbios psicóticos ou orgânicos. Desses, 16 receberam diagnóstico de TEPT e quatro, apesar de terem experimentado a violência, não desenvolveram o problema.
Para codificar as narrativas foi utilizado a metodologia qualitativa Grounded Theory, em virtude da sua afinidade teórica com a semiótica. Três sentimentos mais citados pelos pacientes emergiram das análises finais das entrevistas: o ódio, o medo e o trauma.
Fiks explica que o medo e o trauma podem ser parte do espectro de psicopatologia, isto é, do quadro clínico típico do TEPT. Porém, o ódio, que não costuma aparecer em casos traumáticos, nessa pesquisa se tornou o principal conceito do paciente na compreensão do ato violento que leva ao trauma.
“O ódio realmente não surge nas diretrizes para o diagnóstico, mas em alguns casos – e depende muito também da comunidade afetada – ele aparece como aliado a um desejo de vingança e ao mesmo tempo a um estado de covardia”, afirma o especialista. “É como se o traumatizado estivesse preso no binômio vítima-reparação e muitos fazem suas vidas em torno de processos judiciais, aposentadorias precoces ou até mesmo apelam para a vingança interpessoal. É algo bastante complexo que geralmente aparece no decorrer do tratamento e não na abordagem inicial, quando o paciente ainda está em trauma agudo”.
Para o psiquiatra, esse achado pode auxiliar imensamente na diretriz do tratamento psicoterápico. “Em uma abordagem cognitivo-comportamental, o lugar de vítima-vingador pode ser trabalhado para que o indivíduo deixe de pautar sua vida sobre esse pensamento”, diz. ”No campo da terapia de exposição, cada vez mais indicada no TEPT, os afetos decorrentes dessa posição são manejados. Nas terapias psicodinâmicas, as memórias traumáticas, a desintegração do indivíduo – o que eu era e o que passei a ser –, são examinados para que o traumatizado deixe de viver das memórias traumáticas e se recrie livre dessa posição”.
Sintomas do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)
Os sintomas podem manifestar-se em qualquer idade e levar meses ou anos para aparecer. Para o diagnóstico, é necessário que o indivíduo tenha passado ou testemunhado uma situação com perigo de morte. Como sintomas acessórios, é preciso apresentar:
• Evitação - afastamento do local ou de situações que lembrem o evento, chegando ao isolamento total.
• Revivescência - lembranças intrusivas do evento, seja na vida de vigília seja por pesadelos.
• Hiperexcitação - os sustos paradoxais, uma hipervigilância constante (estado de alerta), medo.
• Apatia - Nesse, cabem todas as variantes do espectro da depressão, como anedonia (é a dificuldade ou incapacidade de uma pessoa em sentir prazer ou se motivar a realizar atividades que antes eram prazerosas), culpa, lentidão, restrição do campo de vida.
Artigo relacionado:
FIKS, José Paulo; MELLO, Marcelo Feijó. The live memory of annihilation as a hindrance to existence: a proposal for the “A” criterion in PTSD psychosocial Interventions. Scientific Reports, v. 2, n. 6, ago. 2013. Open access. Acesso em: 30 set. 2016.
Especial • Intolerância
Brasil vive tempos de barbárie
Política
A intolerância sai do armário, chega às ruas e se propaga na internet
Repressão
Truculência da PM coloca democracia em risco
Racismo
Arte da periferia denuncia “genocídio negro”
Violência doméstica
Brasil é o 5º país que mais mata mulheres
Gênero
Um estupro a cada 11 minutos
Bullying
Metade dos estudantes brasileiros já sofreu humilhações
ECA
Contra o crime, incluir e educar