O ano de 2016 ficará marcado na história do Brasil: suas principais ruas e avenidas se tornaram palco de manifestações políticas constantes. O impeachment da presidenta Dilma Rousseff, aprovado pelo Senado no final de agosto, causou reverberações profundas na conjuntura política. A polarização entre os favoráveis e contrários ao impedimento trouxe à tona episódios de intolerância que colocam em xeque a democracia e o respeito à pluralidade.
Ao questionar se os indivíduos saíram às ruas apenas por questões políticas, Esther Solano, cientista social e docente no curso de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN/Unifesp) – Campus Osasco, coordenou uma pesquisa em conjunto com Pablo Ortellado, docente na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP), que identificou os aspectos sociais, valores morais e políticos da população que foi aos protestos pró e anti-impeachment.
Em São Paulo, no ato pró-impeachment de 12 de abril, um grupo de 30 alunos, coordenados pelos professores, realizou 571 entrevistas com os manifestantes. “Infelizmente, as pessoas não vão para rua só por questões políticas. Há um ódio e preconceito de classe muito forte. O repertório e a narrativa das pessoas é conservador. Existe uma frustração com o sistema em geral, que leva muitos desses sujeitos à buscarem soluções antidemocráticas e autoritárias”, comenta Esther Solano.
Entre os entrevistados, 68,5% declararam ter ensino superior completo, 77,4% são brancos, 24,3% têm renda de até R$ 7.880, 29,6% de até R$ 15.760 e 20% ganham até R$ 20.000 ao mês.
Na avaliação da cientista social, o país sempre teve uma dinâmica de classe muito perversa, com elites econômicas e políticas ao lado de uma massa social empobrecida. Esta estrutura de classes é responsável pelo discurso de ódio eminente contra os partidos de esquerda e contra os movimentos sociais.
“Existe um sentimento de raiva contra a política lulista, que promoveu um ascenso da classe C por meio do consumo e políticas de inclusão social. A maioria dos entrevistados pró-impeachment tem um discurso de classe e xenófobo muito forte, conservador, meritocrático e punitivo. São contra o Bolsa Família, contra cotas universitárias e contra o programa Mais Médicos, por exemplo”, explica Esther.
A pesquisadora aponta paradoxos no discurso dos entrevistados que, ao responder questões como descriminalização do aborto e da maconha, são liberais, mas só ao que concerne ao seu grupo social. “O discurso de classe e preconceituoso é acompanhado de uma liberdade no que se refere a eles, apenas à sua classe. ‘Eu posso fumar maconha, mas o pobre que trafica tem que ser preso e até mesmo morto pela polícia’. Na opinião deles, para resolver problemas de violência, a única solução é mais policiamento”, afirma.
Intolerância: coxinhas x mortadelas
Xingamentos, agressões, bandeiras pela volta da ditadura, apologia à tortura e faixas em defesa da democracia compuseram os cenários das milhares de pessoas que foram às ruas. Criou-se uma polarização intensa entre os “coxinhas” (pró-impeachment) e “mortadelas” (contra). Para Esther Solano, essa polarização vai na contramão de um governo democrático. “Isso gera um empobrecimento de informação. Formam-se dois grupos que não conseguem debater, escutam o que querem escutar e não têm espaço para o outro. As pessoas só escutam o que convêm. São dois bandos que se enfrentam; é a ausência total de diálogo”.
A internet e as redes sociais se concretizaram como um palco da intolerância. Segundo a professora, o Facebook, por exemplo, cria guetos ideológicos. “A internet pode ser uma plataforma democrática muito poderosa. Mas tem um outro lado. Criam-se bolhas de informação e uma espiral de afirmação da posição ideológica de um mesmo grupo, não um debate com aquele que tem outra informação ou opinião contrária. É uma incapacidade enorme de diálogo”, reforça a pesquisadora.
Para ela, as redes sociais dão um espaço ainda maior para intolerância a partir do momento em que permitem a “liberdade do anonimato”, que fomenta a transformação de confronto de ideias para conflitos pessoais e estabelece o que a cientista social chama de dialética do inimigo. “Aquele que tem uma opinião política diferente não é um adversário político, é um inimigo. É a política do ódio. Com o adversário político há uma troca de ideias, com inimigo não. O objetivo é aniquilá-lo. Aniquilar o pensamento, a voz. É uma dinâmica de guerra”, analisa.
Populares ocupam as ruas e se posicionam contra o impedimento de Dilma Rousseff
As grandes capitais também foram palco de atos a favor do impeachment, convocados pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e Vem Pra Rua
Reforma política
A pesquisa também abordou a confiança nas instituições políticas, entre elas partidos, políticos, ONGs, movimentos sociais e imprensa. Nos atos pró-impeachment, 69,9% das pessoas não confiavam em políticos e 73,2% não confiavam em partidos. De acordo com Esther, a democracia representativa está em crise e a figura inflexível da estrutura partidária não acompanha as mudanças dinâmicas da população. "É muito preocupante quando se tem uma democracia desgastada e atitudes antidemocráticas e autoritárias vêm à tona. É uma crise representativa e dentro dessa crise, personagens como Donald Trump, candidato à presidência dos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro se aproveitam desse vazio representativo".
Outra pesquisa foi realizada no dia 31 de março de 2016, em um ato na praça da Sé, mas com aqueles que se posicionavam contra o impeachment. Embora a confiança dos manifestantes nos partidos em geral seja razoavelmente baixa (37% não confiam).
Em relação à renda, o padrão desta manifestação foi um pouco inferior ao das manifestações anti-Dilma, com 54,5% dos participantes com renda familiar entre 3 e 10 salários mínimos. No tocante à escolaridade, 77% dos manifestantes tinham formação no ensino superior e 34,9% se declararam negros ou pardos. "Seja de esquerda ou direita, a única coisa que coincide nessa polarização é a necessidade da reforma política. O país está em uma situação de muito desequilíbrio, até mesmo histérico. Mas essa reforma tem que ocorrer em um momento mais calmo. Como fazer uma reforma com o Congresso mais conservador da história?", indaga.
Esther Solano, pesquisadora e docente na EPPEN/Unifesp – Campus Osasco
Para ela, há projetos de lei no campo da segurança pública, gênero, sexualidade e liberdade de expressão que fomentam a intolerância. A redução da maioridade penal, Estatuto do Desarmamento, Lei Antiterrorismo, Estatuto da Família, Escola Sem Partido, Dia do Orgulho Hetero e projetos contra a legalização do aborto são alguns deles.
"O discurso de ódio não se baseia em pesquisas científicas, dados, ele é muito emocional. Ninguém apresentou estudos, por exemplo, para defender a redução da maioridade penal. É um discurso emotivo, que tem como objetivo aumentar a punição e a intolerância", destaca.
Especial • Intolerância
Brasil vive tempos de barbárie
Repressão
Truculência da PM coloca democracia em risco
Racismo
Arte da periferia denuncia “genocídio negro”
Violência urbana
Armas de fogo matam 1 milhão em 35 anos
Violência doméstica
Brasil é o 5º país que mais mata mulheres
Gênero
Um estupro a cada 11 minutos
Bullying
Metade dos estudantes brasileiros já sofreu humilhações
ECA
Contra o crime, incluir e educar