Em 2016, o curso de Ciências Biomédicas da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo completou 50 anos de existência, iniciando-se suas comemorações em junho com um grande evento no teatro Marcos Lindenberg. Docentes, discentes, servidores e interessados reuniram-se com o objetivo de refletir sobre a criação e evolução do curso, cuja história reproduz a crescente inserção da EPM no contexto social e econômico do país.
Há meio século, no período pós-guerra, a ciência repercutiu um momento de profundas transformações no Brasil e no mundo. O desenvolvimento da Genética e da Biologia molecular redirecionou o rumo da pesquisa e abriu debates. A formação superior nessas áreas foi reformulada, de modo a atualizar e acompanhar continuamente as novas descobertas científicas e seus desdobramentos. Nesse quadro, foi criado em março de 1966 o curso de Ciências Biomédicas, no Campus São Paulo, pelos professores José Leal Prado e José Ribeiro do Valle, que contaram com o apoio de Nylceo de Castro e Antonio Cechelli de Mattos Paiva, titulares de Histologia e de Biofísica.
Marilia de Arruda Cardoso Smith, hoje titular de Genética do Departamento de Morfologia da EPM, ingressou na primeira turma e recorda-se de que, naquele momento, assistir às aulas desses mestres e pesquisadores – entusiasmados com o início das atividades – era um verdadeiro privilégio. Convém enfatizar que as primeiras turmas eram pequenas – formadas por dez estudantes –, o que possibilitava um convívio intenso e uma relação de proximidade entre docentes e alunos.
Na época, o objetivo do curso, que agregava novas disciplinas para a EPM – entre elas, Matemática, Física, Química Orgânica e Analítica, Genética e Evolução –, era desenvolver a pesquisa e a docência nas chamadas “cadeiras básicas” da Medicina, de acordo com o professor Leal Prado. Marilia comenta a importância da abertura desse novo programa de formação: “A Escola Paulista de Medicina expandiu-se significativamente na área básica, com repercussões inéditas na área clínica.”
Apesar de sua motivação inicial estar ligada fundamentalmente à pesquisa e à docência, a graduação em Ciências Biomédicas ampliou-se, anos depois, para o campo das análises clínicas, em razão da demanda dos alunos e das novas oportunidades surgidas no mercado de trabalho.
Quando questionada sobre os grandes marcos do curso, Marilia cita as várias contribuições de alunos graduados, que ocupam postos de liderança científica ou funções de destaque, dignas de reconhecimento profissional, e especialmente a posse de Helena Nader na presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Docente titular do Departamento de Bioquímica da EPM, Helena Nader foi a primeira biomédica a presidir essa entidade.
Silvia Ihara, professora associada do Departamento de Patologia, até recentemente coordenadora da área biomédica, lembra a acolhida que recebeu quando ingressou na quarta turma do curso. Diz que escolheu a Biomedicina em virtude de sua vocação para a pesquisa laboratorial e que, agora, avalia ter escolhido o lugar certo para estudar. O curso manteve a ênfase tradicional na docência e na pesquisa, mas modernizou-se em decorrência da demanda apresentada pelos alunos interessados em atuar também no mercado laboratorial.
Formatura da 1ª turma de graduados em Ciências Biomédicas pela EPM (1969)
Da esquerda para a direita: professores J. Leal Prado (fundador), Nylceo M. de Castro (cofundador), A.C. M. Paiva (cofundador), J.C. Prates (docente e homenageado)
Participação discente
Cinco décadas após sua fundação, o curso ocupa o terceiro lugar em qualidade de ensino entre 204 instituições avaliadas pelo Ranking Universitário Folha (RUF 2016), as quais oferecem essa modalidade de formação profissional.
Por outro lado, a intensa mobilização do corpo discente em torno da prestação de serviços à comunidade propicia, em parte, o atendimento à função social que cabe à universidade exercer. Assim, muitos estudantes dedicam seu tempo livre a atividades voluntárias, apesar de cumprirem uma densa grade curricular, em período integral. Um exemplo é o trabalho que desempenham no Cursinho Pré-Vestibular Jeannine Aboulafia (Cuja), gerido por estudantes de diversas áreas do Campus São Paulo e que oferece gratuitamente aos vestibulandos mais de 160 vagas por ano. São também organizadas oficinas e visitas monitoradas para escolas públicas e particulares, com o intuito de apresentar aos secundaristas a carreira de biomédico e o ambiente universitário.
Um marco recente para a comunidade estudantil foi a internacionalização, realizada por meio do programa Ciência sem Fronteiras, permitindo que os interessados participassem de intercâmbios e frequentassem aulas em diferentes universidades do mundo, fato inédito na história do curso. Silvia ressalta que os bolsistas sempre causam boa impressão por onde passam: “Os alunos retornam com cartas de recomendação elogiosas e com boas notas. Assim, percebemos que não estamos em descompasso com as universidades estrangeiras.”
Após 50 anos, a graduação em Ciências Biológicas (modalidade médica) da EPM consolida sua trajetória de excelência, na qual a pesquisa inscreve-se como um marco tradicional, além de anualmente prover a academia e o mercado de trabalho com docentes e pesquisadores qualificados.
Uma questão de alma
Discurso proferido por Helena Bonciani Nader durante a realização do evento na Unifesp
Estamos aqui reunidos para celebrar nesta data o jubileu de ouro da criação do curso de Ciências Biomédicas, inaugurado de forma pioneira pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), à época Escola Paulista de Medicina (EPM).
Sinto-me duplamente honrada por poder proferir essas palavras, pois sou ex-graduanda da 2ª turma do curso biomédico da nossa EPM e, hoje, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que foi o espaço onde ocorreram as primeiras discussões que deram origem à proposta.
A ideia da criação de um curso com o perfil de Ciências Biomédicas, graduação e pós-graduação, foi inicialmente apresentada pelo Prof. Dr. José Leal Prado e discutida em um simpósio realizado durante a reunião da SBPC em 10 de novembro de 1950, na cidade de Curitiba. Infelizmente, em uma reunião posterior, no dia 7 de dezembro, com a participação de professores da Escola Paulista, da Universidade de São Paulo, de pesquisadores do Instituto Butantan e Instituto Biológico, a ideia considerada interessante e relevante foi abandonada, tendo em vista que a EPM era uma escola médica particular e que atravessava várias dificuldades financeiras.
No entanto, os professores da EPM, entre eles os professores Leal e Ribeiro do Valle, que já lideravam a pesquisa nas áreas básicas da Medicina, não abandonaram o projeto, mas intensificaram seus esforços no sentido de garantir formação adequada aos que trabalhavam ou buscavam oportunidades complementares em seus laboratórios.
A federalização da EPM ocorreu em 1956, transformando a instituição em uma faculdade pública. Em razão das pesquisas desenvolvidas pela escola, em 1964, a Capes, em associação com a Fundação Ford, reconheceu os departamentos de Bioquímica e Farmacologia e o de Microbiologia e Imunologia da EPM como Centros de Treinamento Avançado para pós-graduação. O ambiente científico no Brasil na década de 1960 era bastante modesto. Existiam somente 22 universidades federais, e em São Paulo, as únicas universidades públicas eram a USP e a Unicamp, além de várias escolas isoladas, como o ITA e institutos e faculdades que, reunidos em 1976, dariam origem à Unesp. As pesquisas nas áreas biomédicas contavam também com o Instituto Butantan, fundado em 1901, e o Instituto Biológico, que data de 1927 e que, devemos lembrar, também foi o palco para a criação da SBPC, proposta pelo nosso querido Maurício Rocha e Silva.
A fundação da SBPC ocorreu em 8 de julho de 1948 na sede da Associação Paulista de Medicina (APM), em reunião convocada por Paulo Sawaya, José Reis, e, claro, Maurício Rocha e Silva, o idealizador. O cenário científico biomédico da época contava ainda com a Fundação Oswaldo Cruz, antigo Instituto Soroterápico Federal, criado em 1900.
Trago estes dados, com datas e origens dessas instituições, porque quero ressaltar um aspecto que me parece bastante interessante: a maioria desses movimentos foram liderados por médicos voltados à pesquisa biológica e biomédica, que entendiam a necessidade de incentivar a ciência e a tecnologia para o desenvolvimento do país. Assim, relembro também que a criação do curso de Ciências Biomédicas foi aprovada por unanimidade pela Congregação da EPM, constituída – ela também - exclusivamente por profissionais médicos.
Analisar a história do curso, olhando, em especial para sua criação em 1966, também nos leva a relembrar o ambiente político, em pleno início da longa ditadura militar que nosso país viveu. Ao longo das décadas de 1960 e 1970, professores da nossa EPM foram perseguidos e cassados, junto a tantos outros pesquisadores, das mais variadas instituições do país, que não aceitaram a ideologia propagada pelo regime. Ao mesmo tempo, infelizmente, tivemos professores que pactuaram com o governo, colaborando tanto com o cerceamento da nossa liberdade e atividade política, quanto com as violentas punições a quem ousava desafiar a ordem vigente.
Tomo a liberdade de trazer a minha experiência enquanto estudante, dessa 2ª turma. Nós tínhamos professores e colegas infiltrados pelo regime que fiscalizavam e emitiam relatórios sobre as nossas atividades; delatavam e denunciavam ações de resistência aos órgãos da repressão. Muitos colegas –esses sim, estudantes de verdade – foram presos e barbaramente torturados, alguns nunca retornaram. Enquanto a ditadura fazia recrudescer a censura, o pensamento acadêmico alçava voo e fazia-se ouvir, pelo menos dentro das próprias instituições. Passeatas, manifestações, exílios, prisões e torturas nos lembram do velho lema: “Conhecimento é poder”. Esse poder era perigoso para o regime e, portanto, deveria ser eliminado. Nesse cenário de oposições, enquanto alguns colaboravam com o sistema, outros resistiam. Alguns na linha de frente, em ações de enfrentamento, outros no próprio fazer educativo, tentando sustentar e garantir a formação dos estudantes e a produção científica baseadas em princípios éticos e democráticos.
Por outro lado, esse mesmo regime ditatorial, em 1968, implementou uma reforma universitária determinante para o desenvolvimento do ensino superior e da ciência no país. Entre as ações propostas na reforma, ressalto a abolição da cátedra vitalícia, que impedia a ascensão de novas lideranças, o incentivo para cooperação entre disciplinas, a flexibilização curricular e o estímulo à pós-graduação.
Então, diante desses cenários – político, científico e acadêmico – o curso de Ciências Biomédicas iniciou, de forma pioneira, sua trajetória para formar profissionais capazes de exercer a docência e a pesquisa nas diferentes disciplinas básicas das áreas da saúde.
Sobre a importância do curso nesse contexto, destaco as palavras do professor Leal, publicadas na revista Ciência e Cultura, em 1966: “Uma instituição ativa, como a Escola Paulista de Medicina, sente-se muito limitada dentro da estrutura de um instituto isolado de ensino superior. A criação do curso de Ciências Biomédicas tornará mais amplo seu campo de atividade cultural e mais importante sua contribuição social. Se tivermos êxito nessa iniciativa, estaremos armazenando uma experiência valiosa, ao mesmo tempo que teremos maiores possibilidades para fazer uma segunda tentativa no caminho da universidade federal. Só o futuro dirá a melhor conduta a seguir”.
Ao longo desses 50 anos, formamos profissionais que têm sólido conhecimento das disciplinas básicas dentro das especialidades da área biomédica, capacidade de autoaprendizagem, espírito crítico, conhecimento e grande familiaridade com o método científico e capacidade de formular e desenvolver planos de pesquisa e relatar resultados e conhecimentos com clareza.
Os egressos do nosso curso são lideranças em diferentes áreas do conhecimento, ocupando posições de destaque em atividades de ensino, pesquisa e extensão no país e no exterior.
Muitos são membros da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp), da Academia Brasileira de Ciências (ABC), presidentes de sociedades científicas, membros e coordenadores de comitês assessores do CNPq, da Capes, da Finep e de fundações de apoio à pesquisa, diretores, pró-reitores, conferencistas convidados e organizadores dos principais congressos nacionais e internacionais, entre tantas outras ações. Esses egressos também desempenham funções importantes na indústria e em outras atividades de tecnologia e inovação. A existência do curso criou uma ambiência de alta relevância científica e tecnológica nas áreas básicas e profissionalizantes da saúde, impactando diretamente a criação e a qualidade dos programas de pós-graduação da EPM. Os primeiros foram os programas de pós-graduação em Biologia Molecular, em 1970, e o de Microbiologia e Imunologia, em 1971, seguidos de uma grande expansão para diferentes áreas, o que tornou a EPM uma referência na oferta e qualidade da pós-graduação nacional.
Em 1994, diante da intensa produção científica e da qualidade do ensino, a EPM foi transformada em universidade temática da área da saúde e que hoje figura entre as melhores instituições do país. Segundo recente levantamento do Times Higher Education (THE), mesmo após nossa gigantesca expansão para todas as áreas do conhecimento, em seis diferentes campi no Estado de São Paulo, iniciada em 2003, seguimos em destaque, ocupando a 6ª posição entre as melhores universidades da América Latina.
Outras instituições públicas, federais e estaduais, investiram na criação de cursos biomédicos tomando a nossa proposta como referência, ressaltando mais uma vez nossa contribuição para o desenvolvimento da educação superior e da ciência no país. Por outro lado, é preciso dizer que algumas instituições de ensino superior privadas viram no curso um nicho para formar profissionais voltados ao trabalho com análises clínicas, em hospitais e laboratórios, objetivo totalmente desvinculado da proposta idealizada na nossa universidade.
Entre outras muitas características e destaques do nosso curso biomédico, ressalto a contribuição na produção científica indexada internacional. Quando o curso foi criado, o Brasil publicava anualmente cerca de cem artigos e hoje esse número chega a 40 mil. Com certeza a graduação e a pós-graduação biomédica, como idealizadas pelo nosso fundador, contribuíram para esse crescimento exponencial.
Ressalto também o papel fundamental que nossos egressos tiveram na regulamentação das profissões de biomédico e biólogo. Conquistas importantes que garantiram a especificidade do trabalho desses profissionais.
E ainda trago os nossos estudantes, que, entre outras atividades, entendendo o papel da extensão universitária, criaram o Cursinho Pré-Vestibular Jeaninne Aboulafia (Cuja/Unifesp), que há 14 anos prepara estudantes para inserção no ambiente acadêmico.
Poderia ainda elencar muitos outros pontos para lembrar a importância e a qualidade da nossa proposta formativa, mas optei por trazer o que, a meu ver, nos diferenciou e segue ainda hoje nos diferenciando.
Nós tínhamos e temos os melhores professores dentro da sala de aula, com capacidade para ensinar;
Nós tínhamos e temos os melhores professores no relacionamento com os alunos, com capacidade para orientar;
Nós tínhamos e temos os melhores pesquisadores nas suas áreas de atuação;
Nós tínhamos e temos estudantes, funcionários e professores, ou seja, a comunidade mais criativa diante das adversidades;
Nós tínhamos e temos aqueles que lideraram mudanças importantes na trajetória da ciência nacional;
Nós tínhamos e temos aqueles estudantes, funcionários e professores que acreditam profundamente no país e não perdem a capacidade de sonhar.
Por fim, acredito que o espírito arrojado e inovador de Leal Prado e Ribeiro do Valle segue presente. Quando iniciaram a pesquisa nos porões do Hospital São Paulo, esses mestres lançaram as bases para nosso curso de graduação e para a universidade que somos hoje.
Eu tenho até hoje na memória o discurso proferido pelo professor Leal na Palavra aos Pais, em nossa formatura. Ele disse: “Dos vossos filhos vamos querer quase tudo, mas sobretudo a alma! ”. Gostaria muito que Leal estivesse aqui presente para comemorar conosco esses 50 anos e visse que demos muito, inclusive, as nossas almas.
Em tempos novamente difíceis para o nosso país, encerro emprestando as palavras de Manoel de Barros no poema O Menino que Carregava Água na Peneira, que diz:
“Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos”
Acredito que nós, estudantes, funcionários, professores e egressos do curso de Ciências Biomédicas, assim como os poetas, enchemos os vazios com as nossas peraltagens e alguns vão nos amar pelos nossos despropósitos.
Obrigada.