Ofuscada pela pandemia de HIV/Aids na década de 1980, a infecção causada pelo vírus T-linfotrópico humano (HTLV) permanece desconhecida. Endêmica, prevalece em regiões específicas como Japão, Caribe, África e Brasil e atinge entre 15 e 20 milhões de pessoas no mundo. Mesmo com um grande número de pessoas infectadas, a psicóloga Karina Zihlmann, do Departamento de Gestão e Cuidados em Saúde no Instituto de Saúde e Sociedade (ISS/Unifesp) – Campus Baixada Santista, explica que a falta de informação sobre a infecção leva à negligência das doenças associadas ao vírus, equivocadamente apelidado como ‘vírus primo do HIV’.
“O HTLV possui características epidemiológicas e patológicas específicas. A sociedade civil se organizou para combater a epidemia do HIV, mas os sujeitos portadores do HTLV seguem sem cuidados específicos para suas necessidades, completamente ignorados pelas políticas públicas em saúde, que pouco fazem quanto a investimentos na prevenção e tratamento dessa infecção ”, explica a psicóloga, que estudou as decisões reprodutivas desses indivíduos em sua tese de doutorado realizada na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) em 2009.
Primeiro retrovírus humano isolado, o HTLV infecta os linfócitos, que são células de defesa do organismo. A forma de infecção acontece por meio de relação sexual desprotegida com pessoa infectada, contato sanguíneo e compartilhamento de agulhas durante o uso de drogas. Entretanto, em razão das características virológicas da infecção, considera-se que a principal forma de transmissão ocorra de mãe para filho, especialmente durante o aleitamento materno, conhecida como transmissão vertical.
De acordo com o artigo Infecção pelo HTLV1/2 em Gestantes Brasileiras, publicado em 2014 na Revista Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e de autoria do Núcleo Perinatal do hospital universitário, a transmissão vertical ocorre em cerca de 20% dos filhos de mães infectadas. O estudo também revela que a maior soroprevalência do vírus no país – que possui a estimativa de 800.000 a 2,5 milhões de pessoas infectadas – é nos Estados do Norte e Nordeste, como Pará, Pernambuco, Bahia e Maranhão.
Segundo Karina Zihlmann, a infecção por HTLV tem características distintas da infecção pelo HIV/Aids e é um problema de saúde pública negligenciado pela comunidade acadêmica e pela sociedade civil, incluindo o poder público. “Pouco se sabe sobre a real dimensão epidemiológica do HTLV, até porque pouco se estuda sobre o assunto. Trata-se de uma infecção de grande repercussão, mas pouco enfrentamento por parte das políticas públicas. Até mesmo os profissionais de saúde desconhecem o HTLV e, como consequência disso, observa-se a falta de identificação das pessoas infectadas, as mesmos seguindo sem evitar a transmissão para seus parceiros e filhos”, afirma Karina. As pesquisas sobre o retrovírus são escassas, sendo que a maioria dos dados epidemiológicos são obtidos a partir de bancos de doação de sangue, o que limita muito a leitura de uma prevalência ampla do retrovírus na população em geral.
A diferença crucial entre as infecções pelo HIV e pelo HTLV está relacionada ao tratamento. Enquanto o HIV responde ao uso dos antirretrovirais, o HTLV tem uma ação bem diferente no corpo humano e não responde a nenhum tratamento, ou seja, ainda não existe uma forma de intervenção específica para tratar a infecção, apenas alguns medicamentos usados como tentativa de controle dos sintomas das doenças associadas ao HTLV. Uma vez em contato com o retrovírus, não há como reverter o quadro infeccioso. Mas por que mesmo sendo tão grave, o HTLV ainda permanece às sombras?
Segunda a pesquisadora, a invisibilidade que circunda o vírus existe porque apenas 1% das pessoas convivendo com o HTLV desenvolverão algum tipo de doença, ou seja, a maioria permanecerá assintomática por toda a vida, mas elas poderão infectar seus parceiros sexuais e sua prole. Para a psicóloga, embora exista um discurso em saúde pública sobre a importância das ações de prevenção em saúde, a infecção pelo HTLV é um caso elucidativo e explicita que as ações de políticas públicas ainda têm um enfoque no risco de adoecimento das pessoas. A partir dessa lógica, havendo “poucas” pessoas doentes em razão do HTLV, na prática, não haveria necessidade de maiores investimentos na busca e identificação das pessoas infectadas.
A leucemia por células T (ATL) e a paraparesia espástica tropical (HAM/TSP) são as duas principais doenças causadas pelo vírus. “Esse tipo de leucemia é extremamente grave e a perspectiva de vida é muito restrita. A partir do momento em que o sujeito descobre que tem essa doença, viverá alguns meses, no máximo, e a quimioterapia pode fazer com que o quadro se agrave ainda mais. A infecção é tão desconhecida que muitos médicos, ainda que trabalhem com pacientes que tenham câncer hematológico, ignoram o HTLV”, comenta Karina.
A paraparesia espástica tropical faz com que o infectado perca gradativamente a capacidade de locomoção e faz com que os membros inferiores sofram com espasmos. “O paciente que desenvolve a paraparesia por HTLV tem uma dor neuropática, progressiva, extremamente debilitante. Dificilmente esta pessoa voltará a andar”, observa a psicóloga, explicando que um dos mecanismos de ação da infecção pelo HTLV é inflamatório e afeta a região lombar da coluna e da medula óssea, o que resultará na paraparesia dos membros inferiores, ou seja, alteração no controle motor, mas o sujeito mantém a sensibilidade.
A identificação desse vírus é, portanto, um fator chave para o enfrentamento da infecção. Em populações afetadas por quadros de perda de controle motor que são tratadas em instituições de saúde especializadas, ainda hoje, observa-se desconhecimento sobre a possibilidade de que as pessoas possam ser soropositivas para o HTLV. Em 2008, o neurologista Francisco Javier Carod Artal desenvolveu uma pesquisa com pacientes diagnosticados com paraparesia no ambulatório de neurologia do Hospital Sarah Kubitschek, na cidade de Brasília, e encontrou prevalência de sorologia positiva para HTLV-1 em 17% deles.
Karina Zihlmann
De acordo com a pesquisadora, esse trabalho explicita que mesmo as pessoas que apresentam sintomas continuarão negligenciadas como portadoras da infecção. Sendo assim, as atuais políticas públicas acabam por marcar o sujeito de forma a impedir a visibilidade da própria infecção, bem como das doenças associadas. Embora os sujeitos sintomáticos vivenciem uma série de limitações e estigmas sociais, na prática, observa-se que ter sintomas não é uma condição suficiente para “tornar visível” o HTLV.
Como não há tratamento, o único modo de frear uma transmissão em massa da infecção é a prevenção. Além do uso de preservativos nas relações sexuais, existem outras medidas que poderiam ser tomadas pelo governo. Conforme Karina relata, no Japão havia alto índice da transmissão vertical e consequentemente maior ocorrência das doenças associadas ao HTLV, principalmente as leucemias. “O governo japonês, na década passada, tomou uma posição radical e baixou um decreto para que todas as mulheres grávidas fossem obrigatoriamente testadas para o HTLV e impedidas de amamentar, caso o resultado fosse positivo”.
Com essa ação, a transmissão vertical que atingia índices de 30% a 40% passou para 3%. Dessa forma a infecção foi praticamente debelada em questão de uma década. Karina ressalta que ações dessa ordem podem não fazer sentido para um país com cultura distinta da japonesa, e, por isso, é crucial que as estratégias de prevenção sejam desenvolvidas a partir das características biopsicossociais de cada população.
Outra medida interessante seria disponibilizar o teste para o HTLV no pré-natal, assim como é feito para o HIV. Para isso, há necessidade de investimento em formação dos profissionais de saúde, principalmente aqueles que trabalham com gestantes, e campanhas de conscientização para que as mães portadoras da infecção interrompam a amamentação, com o devido suporte emocional para a tomada dessa decisão, que costuma ser bastante sofrida e complexa. A psicóloga ainda lembra que para as mulheres diagnosticadas como soropositivas para o HIV, antes da gestação ou na própria gestação, que interrompem o aleitamento materno, há uma portaria que garante acesso ao leite artificial substituto e gratuito, o que não acontece para as mães com HTLV.
A pesquisa na Unifesp e o olhar da saúde pública
Pouco depois de iniciado seu trabalho como docente na universidade em 2011, a psicóloga Karina Zihlmann foi selecionada para um projeto fomentado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ)*, cujo objetivo foi a divulgação de trabalhos para aprofundar o conhecimento sobre o HTLV. Intitulado Trajetórias de Vida de Pessoas Vivendo com o HTLV-1: os Sujeitos, suas Necessidades Complexas e o Desafio do Cuidado em Saúde Pública, o projeto se voltou para a vivência dos indivíduos portadores desse retrovírus para, então, promover uma discussão sobre políticas públicas e ações de enfrentamento.
“Apoiados pelo Departamento de Gestão e Cuidados em Saúde, desenvolvemos uma série de artigos científicos sobre o tema, além de participações em palestras e congressos. Apesar disso, os artigos produzidos seguem sendo rejeitados para divulgação em revistas científicas por desconhecimento do vírus”, lamenta a pesquisadora.
Além do olhar da saúde pública, os aspectos subjetivos e psicológicos dos pacientes são considerados fundamentais nos estudos de Karina. Segundo ela, as próprias pessoas com HTLV têm dificuldade de se colocarem visíveis por medo de serem confundidas com portadoras de HIV e sofrerem com todo preconceito e estigmatização que existe em torno dessa outra infecção mais conhecida socialmente. Há pouca mobilização da sociedade civil e, desse modo, a endemia continua desconhecida, porque as pessoas com HTLV ainda não se organizam como as pessoas com HIV se organizaram no passado e atualmente, reivindicando seus direitos como cidadãos.
“O HTLV nos mostra como ainda somos engessados em termos de saúde pública e pensamos só na doença e não em prevenção. Esses sujeitos são invisíveis perante o poder público”, pontua Karina. É urgente que os pacientes com HTLV sejam devidamente cuidados e acolhidos, além de terem a possibilidade de adotar condutas, não só quanto aos aspectos biomédicos, mas também quanto aos fatores emocionais.
“A endemia do HTLV é paradigmática para a Saúde Pública. Ela exige que se assuma radicalmente uma posição ética de cuidado ao sujeito e não só considerá-los números e estatísticas. É preciso mudar a forma de pensar a própria saúde pública e, de fato, adotar aquilo que preconizamos e consideramos a base de nossa ética: o olhar da prevenção em saúde como fundamento”, finaliza a pesquisadora.
* Projeto CNPQ Chamada Universal 14/2012 nº471624/2012-8
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ZIHLMANN, Karina Franco; ALVARENGA, Augusta Thereza de; CASSEB, Jorge. Living invisible: HTLV-1-infected persons and the lack of care in public health. Plos Neglected Tropical Diseases, v. 6, p. 1705, 12 jun. 2012. Disponível em:< http://journals.plos.org/plosntds/article?id=10.1371/journal.pntd.0001705 >. Acesso em: 14 abr. 2016.
ZIHLMANN, Karina Franco; ALVARENGA, Augusta Thereza de; CASSEB, Jorge. Reproductive decisions among people living with human T-cell lymphotropic virus type 1 (HTLV-1). Journal of Infectious Diseases and Therapy, v. 1, n. 2, p. 108, 14 jun. 2013. Disponível em:< http://www.esciencecentral.org/journals/reproductive-decisions-among-people-living-with-human-tcell-lymphotropic-virus-type-htlv-2332-0877.1000108.php?aid=14908 >. Acesso em: 14 abr. 2016.
ZIHLMANN, Karina Franco; ALVARENGA, Augusta Thereza de; CASSEB, Jorge. Reflexões sobre o conhecimento e os cuidados em equipe multidisciplinar aos pacientes vivendo com HTLV-1: saindo da “obscuridade”. Prática Hospitalar, v. 11, p. 102-108, jan/fev. 2009. Disponível em:< http://dspace.fsp.usp.br/xmlui/bitstream/handle/bdfsp/564/art_ZIHLMANN_Reflexoes_sobre_o_conhecimento_e_os_cuidados_2009.pdf?sequence=1 >. Acesso em: 14 abr. 2016.