Aos 85 anos – 50 deles dedicados à pesquisa sobre os efeitos das drogas psicotrópicas – Elisaldo Luiz de Araújo Carlini está longe de ter uma vida pacata. Médico, pesquisador, professor emérito da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo e diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), Carlini dedica pelo menos dez horas de seu dia ao trabalho. Atualmente, está no sétimo mandato como membro do Expert Advisory Panel on Drug Dependence and Alcohol Problems (Painel Consultivo de Especialistas em Dependência de Drogas e Problemas com Álcool), da Organização Mundial da Saúde (OMS), e atua como coordenador da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), órgão do Ministério da Justiça.
No entanto, nem mesmo as limitações causadas pela idade fazem com que ele reduza o ritmo de suas atividades. Pai de seis filhos, fruto de seus três casamentos, com sete netos e uma bisneta, acorda diariamente às seis horas e vai dormir por volta da meia-noite. Antes de ir descansar, porém, faz questão de responder a todos os e-mails recebidos ao longo do dia, de reservar um tempo para conversar com a esposa e, ainda, de passear com os cachorros. “Eu não sei viver de outro jeito”, reconhece.
Durante a conversa na sede do Cebrid, na manhã de uma quarta-feira de muito calor, o professor pediu apenas uma pausa para abocanhar a barrinha de cereal e tomar o suco de laranja. Diabético, Carlini precisa evitar a queda do nível de glicose no sangue e as consequências da hipoglicemia; por isso, não pode passar muito tempo sem se alimentar. “Eu não sofro de doença, sofro de velhice. Tudo que você imaginar que um velho tem, eu tenho”, comenta após o lanche.
A paixão do médico especialista em Psicofarmacologia é a pesquisa da flora medicinal. O contato com as plantas começou cedo, aos sete anos, quando deixou a cidade natal de Ribeirão Preto (SP) para ir morar com os pais e cinco irmãos em Pirajá, um pequeno distrito rural do município de Neves Paulista, que fica no extremo norte do Estado de São Paulo. Com cerca de 20 casas, na época, foi nesse vilarejo – desprovido de água encanada, energia, esgoto, médicos e enfermeiros – que o incansável pesquisador aprendeu as diferentes formas de tratamento, à base de ervas, para a cura de doenças.
Como era o filho mais velho, acompanhava as visitas que sua mãe – professora primária e a pessoa mais bem informada daquela região – fazia aos moradores com problemas de saúde, na tentativa de ajudá-los. “Eu via coisas pavorosas, como o parto de uma mulher que gritava continuamente, sem dispor de nenhum recurso.” A passagem por Pirajá marcou-lhe a vida de tal modo que se propôs a cumprir um objetivo: “Eu não queria ter clínica, ser cirurgião, nada disso. Eu queria aprender Medicina.” Depois de formado, seu sonho era trabalhar em navios que, na época, subiam o rio Amazonas para socorrer a população local.
Aos 15 anos, ao chegar a São Paulo, conseguiu emprego como office-boy na multinacional White Martins, especializada na venda de tubos de oxigênio. Com ele, vieram os pais e mais três irmãos; todos – em razão da situação financeira muito difícil – foram morar com os avós. “Eu dormia numa cama no corredor da casa e entregava todo o salário ao meu pai, que me devolvia apenas o dinheiro da condução.”
Em 1952, aos 22 anos de idade, ingressou na EPM, após duas tentativas anteriores. A vida do jovem Carlini começou a ganhar um novo rumo quando conheceu o professor de Farmacologia José Ribeiro do Valle, no 2º ano do curso de Medicina. “Ele mudou minha vida”, garantiu ao reconhecer que herdou de seu mestre o interesse em estudar a Cannabis sativa. “Ribeiro do Valle foi o primeiro brasileiro a trabalhar cientificamente com a maconha, utilizando animais de laboratório. Ele me ensinou as coisas da vida, muitas delas por meio de ditados populares.” Um deles é relembrado por Carlini: “Confia apenas na forte força do seu braço fraco.”
A partir daí, o renomado especialista nunca mais deixou a pesquisa. Em 1957, quando se formou, abandonou o trabalho como instrutor de propagandistas, que exercia em um laboratório farmacêutico, para dedicar-se exclusivamente à carreira. O salário cobria as despesas com o pagamento da faculdade (naquela época a EPM era paga) e complementava o orçamento da família.
Imagem acima, à esquerda – Carlini no Departamento de Farmacologia da Universidade Yale (1963), nos EUA, onde concluiu o mestrado
Imagem acima, à direita – Carlini (em pé, à direita) ao lado de colegas da pós-graduação em Yale: David (meio), Joseph (esquerda) e Anthony (sentado, à esquerda). À direita (sentado), aparece o professor Jack Peter Green, orientador dos componentes do grupo
Imagem abaixo, à esquerda – Os professores Carlini (em pé) e Orlando Bueno observam a caixa de Skinner, usada para experimentos com animais nas áreas de comportamento e aprendizagem (EPM/Unifesp, 1967)
Imagem abaixo, à direita – O professor e seu grande companheiro: o cão Samuel, com dois anos
Trabalhou como assistente voluntário da disciplina de Farmacologia até 1960, quando – após ser contemplado com uma bolsa da Fundação Rockefeller – foi aos Estados Unidos aprender Bioquímica e Psicofarmacologia. Durante sua permanência no país, por quatro anos, cursou o mestrado na Universidade Yale no período de 1962 a 1964. Apesar do convite para continuar na instituição, Carlini decidiu voltar para o Brasil, mesmo sem emprego. Uma das principais razões para que ele tomasse essa decisão não estava relacionada ao desenvolvimento de pesquisas. “Comecei a sonhar com tudo que era do Brasil, e um dia imaginei que estava comendo feijoada. Acordei dizendo: ‘Quero comer feijoada.’ Fui preparar. Mas só consegui fazer uma ‘lentilhada’. Daí pensei: ‘Não dá para ficar mais aqui’. ”
Em 1964, de volta ao país, Carlini passou por algumas instituições da capital paulista, como o Instituto Biológico e a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa. Em 1970, o pesquisador de plantas medicinais foi acolhido pelo diretor da EPM – na época, o professor de Cardiologia Horácio Kneese de Mello –, como professor adjunto. Nessa instituição fundou o Departamento de Psicobiologia e chefiou a disciplina de Psicofarmacologia. Em 1978 foi aprovado no concurso para professor titular de Psicofarmacologia.
Desde seu retorno à EPM, trabalha arduamente para comprovar que a maconha é uma planta fascinante e pode ser uma eficiente alternativa para o tratamento da epilepsia e dos efeitos colaterais (náuseas e vômitos) causados pela quimioterapia de câncer, além de aliviar as dores miopáticas. São mais de 50 anos de estudo, com foco na compreensão dos mecanismos pelos quais a Cannabis sativa age no organismo humano. Juntamente com sua equipe, já publicou diversos trabalhos em revistas científicas internacionais, reunindo cerca de cinco mil citações. Até o momento, orientou cerca de 24 dissertações de mestrado e 25 teses de doutorado. “Os primeiros estudos publicados no mundo sobre o efeito benéfico do canabidiol em adultos com epilepsia foram nossos. O Cebrid, Carlini e a EPM são os precursores dos trabalhos com a maconha.”
Foi necessário, entretanto, esperar muitos anos para que finalmente pudesse acompanhar os resultados positivos do uso dessa droga psicoativa no Brasil. Apesar de ser utilizada em cerca de 40 países, somente no início do ano a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a resolução que retira o canabidiol da lista de substâncias proibidas, transferindo-a para a de produtos controlados no país. “Foi o primeiro passo. Espero que isso progrida. Não há sentido na pressão negativa que antes existia. Há mais crença e ideologia na proibição total da maconha.” Ele explica que na planta herbácea ainda existem mais de 60 substâncias que podem ajudar a Medicina.
Mesmo reconhecendo que a Cannabis pode causar efeitos adversos, Carlini acredita que estes representam experiências menores perto das qualidades médicas que a primeira oferece. Lembra, ainda, que seu uso era uma terapêutica corrente no mundo inteiro para vários males até o início do século XX e que, somente depois dos anos 1930, o composto psicoativo passou a ser considerado uma droga maldita por questões comerciais. “O grande segredo do médico é fazer a avaliação risco – benefício. Ele tem de saber que toda droga, sem exceção, traz algum risco ao paciente. E tem de avaliar se o benefício que traz é suficientemente forte para valer o risco.”
Seus trabalhos e pesquisas renderam-lhe várias condecorações e títulos, entre eles: a medalha de Grande Oficial da Ordem do Rio Branco (1996) e a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (2000), ambas concedidas pela Presidência da Repúbli-ca; e os títulos de Conselheiro Emérito do Conselho Federal de Entorpecentes (1987), membro titular do International Narcotics Control Board, eleito pelo Conse-lho Econômico e Social das Nações Unidas (2001), e doutor honoris causa pela Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte (2002).
Legalização aponta resultados positivos
Em janeiro deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a exclusão do canabidiol (CBD) da lista de substâncias proibidas no Brasil, reclassificando-a como substância controlada. Em julho, a importação de medicamentos destinados a pessoas físicas deixou de ter tributação federal; entre eles, figura o canabidiol, que representa uma alternativa para tratar, por exemplo, de casos graves de epilepsia. Portanto, desde que cumpridas as regras estabelecidas, a nova disposição da Anvisa possibilita aos cidadãos brasileiros o acesso àqueles medicamentos sem a incidência de impostos federais.
No Uruguai a legalização da Cannabis é uma realidade parcial: o cultivo é permitido desde que o responsável conste do registro oficial, no qual estão inscritos – até agora – cerca de 2.000 nomes; por sua vez, as cooperativas para o cultivo coletivo da maconha – os “clubes canábicos” – multiplicam-se por todo o país. O secretário nacional de Drogas, Julio Heriberto Calzada, afirma que o país conseguiu reduzir a zero as mortes ligadas à maconha desde que foram adotadas regras para regulamentar seu uso, venda e cultivo.
Em relação aos Estados Unidos, Elisaldo Carlini argumenta que no Estado de Washington a maconha tem sido utilizada como medicamento há mais de 20 anos. “Os médicos prescreviam [a substância psicoativa] com a licença das autoridades e gostavam dos resultados obtidos; os pacientes, que geralmente eram pessoas mais idosas, também estavam felizes com isso.”
Segundo ele, a legalização facilitou o acesso à droga, cujo glamour em parte desapareceu, fazendo com que os jovens, surpreendentemente, perdessem o interesse por ela. “Então, acredito que esse fato [o não aumento do consumo] pode realmente acontecer, e deve estar acontecendo em alguns Estados dos EUA e no próprio Uruguai.”