Presente em parte das dietas da moda, o pão sem glúten é um produto que, cada vez mais, desperta o interesse do público. Apesar do expressivo crescimento desse mercado nos últimos anos, ainda há dificuldade de acesso aos alimentos isentos de glúten devido ao elevado preço e à disponibilidade limitada; por outro lado, a pouca atratividade que esses produtos exercem para os consumidores decorre da aparência, textura, sabor e baixa variedade. Todos os fatores mencionados constituem um obstáculo à manutenção da dieta, comprometendo a saúde e a qualidade de vida das pessoas com esse tipo de restrição alimentar, como os doentes celíacos.
Fernanda Garcia dos Santos, nutricionista e aluna de mestrado do programa de pós-graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde do Instituto de Saúde e Sociedade (ISS/Unifesp) – Campus Baixada Santista, resolveu enfrentar o desafio e, literalmente, colocou a mão na massa. Como integrante do projeto coordenado por Vanessa Dias Capriles, docente do curso de Nutrição, desenvolveu formulações adequadas de pães sem glúten, mediante a utilização de farinhas integrais de trigo sarraceno, sorgo e grão-de-bico. Os resultados obtidos valeram-lhe o terceiro lugar na categoria Mestre e Doutor da 28ª edição do Prêmio Jovem Cientista (2014), promovido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Paralelamente a essa atividade de pesquisa, Fernanda desenvolve – com o apoio de bolsa fornecida pela Capes – o projeto de mestrado, no qual amplia a análise sobre a qualidade tecnológica, aceitabilidade e composição dos pães sem glúten, preparados exclusivamente com farinha integral de grão-de-bico.
O projeto coordenado por Vanessa Dias Capriles, cujo subsídio financeiro proveio do programa Jovem Pesquisador - Fapesp (processo n.º 2012/17838-4), possibilitou a criação do Laboratório de Tecnologia de Alimentos e Nutrição e o desenvolvimento dessa linha de pesquisa no Campus Baixada Santista. A equipe de pesquisadores do projeto, que adota abordagens específicas para superar os desafios tecnológicos e nutricionais envolvidos na panificação sem glúten, testou a utilização de diferentes tipos de farinhas integrais. Procedeu-se à combinação de diferentes proporções das farinhas, que foram adicionadas à farinha de arroz e à fécula de batata, ingredientes estes comumente utilizados nos pães sem glúten tradicionais. No total foram investigadas 30 formulações experimentais. As técnicas aplicadas permitiram definir a composição das formulações que apresentavam simultaneamente os melhores resultados tecnológicos, sensoriais e nutricionais.
Em relação ao preparo dos pães com as farinhas integrais de trigo sarraceno, sorgo e grão-de-bico, a nutricionista realizou a pesagem de todos os ingredientes em uma balança semianalítica; depois, utilizou uma batedeira semi-industrial para misturá-los e aguardou a fermentação da massa em uma câmara controlada, o que – segundo ela – proporciona maior controle da umidade e da temperatura. Por último, assou a massa em um forno elétrico para pães e resfriou-a por cerca de duas horas à temperatura ambiente (23-25°C).
Após a produção dos pães sem glúten, a pesquisadora analisou as propriedades físicas de cada formulação, utilizando o texturômetro, que avalia a maciez dos pães, e o determinador de volumes, que mede sua expansão.
A composição do alimento, ou seja, a quantidade de fibra alimentar, lipídios, proteínas e carboidratos, foi obtida por meio de medições efetuadas no Laboratório de Bromatologia; para a verificação da segurança, que seguiu os critérios microbiológicos estabelecidos na legislação de alimentos, foram realizadas análises no Laboratório de Microbiologia de Alimentos.
Por fim, a qualidade sensorial do produto foi aferida mediante a aplicação de testes de aceitabilidade conduzidos no Laboratório de Análise Sensorial. Visando à maior participação da comunidade nos testes, a pesquisadora afixou cartazes convidativos no campus e inseriu anúncios em um grupo da rede social. Cada amostra foi avaliada por 50 consumidores em potencial, que atribuíram notas de 0 a 10 à aparência, à cor, ao aroma, à textura, ao sabor e ao produto como um todo.
Pães prontos de trigo sarraceno, sorgo e grão-de-bico, ao lado dos respectivos grãos e farinhas. Para a produção do alimento, as pesquisadoras misturaram farinha de arroz e fécula de batata
Ao término da fase experimental, em que foram testadas diferentes tipos de farinhas integrais, a equipe concluiu que é possível utilizar elevadas proporções desses componentes (64-75%) para a elaboração de pães sem glúten. Desse modo, obtêm-se produtos nutricionalmente melhorados e com o mesmo grau de aceitabilidade (entre 7,5 e 8,3) dos pães sem glúten convencionais e até mesmo dos pães feitos com farinha de trigo (que apresentam aceitabilidade em torno de 8,0). O custo médio com as matérias-primas para obtenção dos novos pães sem glúten foi de R$1,02/100g de pão –, o que representa um terço da média do preço dos pães sem glúten disponíveis no comércio de algumas cidades brasileiras, também avaliadas pelo grupo (preço médio R$3,28, com a variação de R$1,80 a R$9,77/100g de pão), indicando a possível viabilidade desses produtos em escala comercial.
No caso específico das experimentações com a farinha de grão-de-bico – que constitui o foco da pesquisa de mestrado desenvolvida por Fernanda Garcia dos Santos – as conclusões vêm surpreendendo os especialistas da área de alimentos e nutrição. Mostrou-se que é possível produzir pães sem glúten de boa qualidade, utilizando-se apenas a farinha de grão-de-bico, independentemente da combinação com outras farinhas e amidos. O produto atingiu o mesmo grau de aceitabilidade que os pães tradicionais, feitos com farinha de trigo, embora se diferencie deles por apresentar maiores teores de fibras e proteínas, além de uma coloração amarelada, característica do grão-de-bico.
Premiação
Os resultados inovadores obtidos por Fernanda na elaboração de pães sem glúten à base de farinhas integrais de trigo sarraceno, sorgo e grão-de-bico garantiram-lhe o 3º lugar na categoria Mestre e Doutor do Prêmio Jovem Cientista (2014), cujo tema foi a segurança alimentar e nutricional. “Conversei com minha orientadora, que apoiou minha inscrição e me incentivou a enviar o projeto. Para nossa felicidade, fomos agraciada com o 3º lugar”, confirmou.
Além da quantia em dinheiro, a nutricionista foi contemplada com uma bolsa de estudos para o doutorado, o que – segundo ela – constitui um incentivo à continuidade da pesquisa. A cerimônia de premiação aconteceu no dia 15 de setembro no Palácio do Planalto, em Brasília.
Novas metas do projeto
Como próximo passo, a equipe de pesquisadores pretende verificar os aspectos relacionados à viabilidade comercial dos novos produtos. O problema imediato a ser enfrentado é o da preservação do alimento. “Fernanda realizará alguns testes com aditivos geralmente utilizados na elaboração de pães para garantir que fiquem macios, com uma textura adequada, e durem ao menos sete dias na casa das pessoas”, adianta a professora Vanessa.
Outros trabalhos estão em andamento, nos quais o grupo testa diferentes tipos de farinhas integrais e ingredientes que possam melhorar a qualidade dos pães sem glúten.
Um dos objetivos do projeto é possibilitar que os novos produtos cheguem à mesa dos que necessitam desse tipo especial de alimento. Considerando o elevado potencial das formulações, a docente já entrou em contato com o Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT), órgão assessor da Reitoria da Unifesp.
Projeto: SANTOS, Fernanda Garcia dos; CAPRILES, Vanessa Dias. Inovação para o desenvolvimento de pães sem glúten de boa qualidade tecnológica, nutricional e sensorial: contribuições para o tratamento dietético de doentes celíacos e demais intolerantes ao glúten. São Paulo, 2014. [Projeto contemplado com o 3.º lugar na categoria Mestre e Doutor da 28.ª edição do Prêmio Jovem Cientista (2014), instituído pelo CNPq]
Mitos e verdades sobre um dos “vilões” das dietas
Apontado como um dos vilões do emagrecimento, o glúten tem sido abolido em parte das dietas atuais. Algumas pessoas estão convictas de que perderam peso após excluí-lo de sua alimentação diária, e outras asseguram que o funcionamento do intestino, nesse caso, melhora. Uma dieta sem glúten é realmente eficaz ou isso não passa de mito?
Vanessa Dias Capriles, docente em Nutrição do Instituto de Saúde e Sociedade (ISS/Unifesp) – Campus Baixada Santista, afirma que “não há nenhuma evidência científica que mostre que o glúten engorda ou faz mal. A proteína do trigo afeta somente as pessoas que têm diagnóstico comprovado de alergia ou intolerância”.
A seu ver, esse mito é incentivado pela mídia. “É um modismo alimentar que atingiu níveis mundiais. Converso com pesquisadores americanos e europeus, que ressaltam a popularização dessa ideia por meio das mídias sociais”, complementa.
Além disso, a procura por alimentos isentos de glúten ampliou-se consideravelmente. “O mercado em questão, que há dez anos era pequeno e destinava-se apenas aos celíacos e aos intolerantes a essa proteína, tem crescido muito”, explica a nutricionista. “É uma tendência que vem aumentando cada vez mais, assim como a busca por produtos sem lactose – tudo isso na esteira de uma questão estética e de emagrecimento sem fundamento científico”, finaliza.