A água ainda é vista mais como um bem econômico do que como direito fundamental e substância vital, necessária a todos os seres vivos, afirma João Alberto Alves Amorim, professor adjunto do curso de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN/ Unifesp) - Campus Osasco - e doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Essa perspectiva penaliza o meio ambiente pelo desperdício e a população, sobretudo os mais pobres, pelo agravamento da escassez, a potencial contaminação e a extinção de mananciais como os sistemas Cantareira e Alto Tietê, que abastecem a região metropolitana de São Paulo.
Especialista em Direito Internacional do Meio Ambiente e em Direitos Humanos, Amorim é autor dos livros Direito das Águas: Regime Jurídico da Água Doce no Direito Internacional e no Direito Brasileiro e A ONU e o Meio ambiente – Mudanças Climáticas, Direitos Humanos e Segurança Internacional no Século XXI, ambos pela editora Atlas. Provocado por Entreteses, Amorim responde a algumas questões sobre a crise hídrica. “É inadmissível que, por exemplo, a Companhia de Saneamento do Estado de São Paulo (Sabesp), uma empresa majoritariamente pública (51% do controle acionário ainda pertence ao governo) tome suas decisões, que afetarão a vida de milhões de pessoas a portas fechadas, sem transparência, à mercê deste ou daquele interesse privado ou político”, afirma o pesquisador.
Acúmulo de lixo no rio Pinheiros, em São Paulo
Entreteses - Qual o perfil da crise hídrica, no planeta e no Brasil?
João Amorim - A escassez de água e as crises de abastecimento eram características de regiões ou países com pouca oferta de água. Hoje, muitas regiões do planeta, inclusive as ricas em disponibilidade hídrica, enfrentam graves situações de escassez. As reservas de água do planeta não são equitativamente distribuídas. Em determinados espaços ocorre ausência de água; em outros, a maior parte, ocorre a escassez socioeconômica, decorrente de má gestão pública, poluição e priorização de captação para fins econômicos, entre outros fatores. O Brasil se enquadra no segundo grupo, assim como a Índia, os Estados Unidos da América e a China. O Brasil, à exceção do semiárido nordestino, possui reservas generosas de água doce e índices de pluviosidade elevados, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste. No Sudeste, a má gestão, a ausência de políticas de urbanização e planejamento urbano sérias, o descaso com o meio ambiente, em especial com a conservação de florestas, matas ciliares e nascentes, a ausência de captação e tratamento de efluentes (esgoto), o altíssimo índice de perdas das redes de distribuição, a falta de investimentos mínimos em infraestrutura e na constante educação da população e dos setores produtivos, a conivência criminosa das autoridades públicas com a apropriação privada de fontes de água por determinadas empresas e setores da sociedade, dentre outros vários fatores socioeconômicos, têm contribuído por décadas para a situação de escassez que vivemos hoje.
E. As políticas públicas inadequadas são, então, a grande vilã?
J.A. Claro. Mas também contribui para a crise a agricultura em larga escala (agronegócio), com utilização de vastas quantidades de água para irrigação e o uso de toneladas de produtos químicos que vão parar nos alimentos e, também, nos mananciais. Uma parte minoritária do setor agrícola incorpora práticas de sustentabilidade ambiental. O setor agropecuário é responsável, globalmente, por cerca de 70% do consumo de água (no Brasil, 72%). Junto a ele vêm as atividades industriais, que respondem por cerca de 20%. Até a metade deste século, o agronegócio será responsável pela perda de um território equivalente ao do Brasil, em biodiversidade e em fertilidade de solo. Muitos acreditam que a agricultura em larga escala apresenta essa demanda de consumo em função da necessidade de produzir alimento para os 7 bilhões de habitantes do planeta e que a pressão populacional, em si, seria uma das duas únicas causas da insustentabilidade do consumo de água (juntamente com a falta de chuva e a distribuição irregular de reservas). Isso não é verdade. O agronegócio não produz para matar a fome, mas para o mercado mundial de comida. As duas coisas não são equivalentes. O mercado é focado na manutenção dos preços globais dos alimentos, para a satisfação das expectativas de lucro das corporações que o controlam, e por isso condena à fome, à desnutrição ou à subnutrição mais da metade da população mundial.
E. Você mencionou a participação da indústria...
J.A. O setor industrial, como o agronegócio, produz bens somente para quem pode adquiri-los. Mesmo assim, esses dois setores são responsáveis pela maior parte do consumo de água do planeta, tanto pela extração quanto pela poluição. O consumo individual responde pelos 10% restantes. As autoridades governamentais, companhias de saneamento, empresas e parte da grande mídia insistem em apontar o consumo individual como o responsável pela escassez. Claro que os padrões individuais de consumo devem mudar. Mas é, no mínimo, injusto e ilógico que se imponha a mudança de comportamentos de consumo de água primeiramente, ou exclusivamente, ao indivíduo. Mesmo durante a crise de 2014, a Sabesp manteve contratos de autorização para um consumo elevado a diversas empresas, tais como shopping centers, edifícios empresariais de alto padrão, templos religiosos, clubes recreativos, etc. Os setores que mais consomem são poupados das medidas restritivas ou punitivas adotadas.
E. A Parceria Público-Privada (PPP) é uma alternativa para enfrentar a crise?
J.A. Ideias como a PPP não são inventadas aqui, mas gestadas por think tanks do sistema econômico-financeiro internacional, tais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ou, no caso específico da água, o Conselho Mundial da Água. São, depois, impostas aos países, principalmente os mais carentes, geralmente mediante forte coação econômica, por diversas entidades como as corporações internacionais de comércio de água e as instituições financeiras do sistema Bretton-Woods (FMI e Banco Mundial). Elas ecoam e reforçam os mantras segundo os quais “somente uma gestão privada pode ser eficiente”, “o estado não tem competência para gerir a água e o saneamento”, etc. Mas, muitos dos países que sediam as corporações - e que impõem aos “emergentes” a privatização - mantêm sob controle estatal a maior parte dos seus setores de água e de saneamento.
E. Existem exemplos disso?
J.A. Em 2011, 96% dos eleitores que participaram de um referendo popular na Itália votaram pela ab-rogação do Decreto Ronchi, que privatizava a água. Um dos argumentos utilizados foram os resultados de um estudo da Universidade de Greenwich, que constatou que, a partir da privatização da água na Inglaterra, no final dos anos 1970, que serviu como modelo para a Itália, as tarifas subiram, os investimentos caíram e a qualidade da água piorou. Países como Alemanha, Portugal, Espanha e França mantiveram estatizados seus setores de água e de saneamento ou tiveram de reverter as privatizações realizadas. A Grã-Bretanha apresenta uma situação bem peculiar. Na Escócia e na Irlanda do Norte o setor de água é integralmente público. Na Inglaterra é controlado por dez companhias privadas. Em 2014, uma pesquisa concluiu que não existem provas de que a gestão privada seja mais eficiente que a pública. Na Noruega, em Alberta (Canadá) e na Califórnia (EUA), estudos semelhantes chegaram à mesma conclusão. Só que na Inglaterra, a conta de água subiu, em média, de £120 ao ano, em 1989, para £204 em 2006 (quase 40% acima da inflação média no período), e os aumentos continuam a ocorrer. Na Califórnia, que passa pela pior escassez hídrica de sua história, a postura governamental foi oposta à adotada por aqui. Mesmo sendo ano eleitoral, o governador tomou, em janeiro de 2014, uma série de medidas impopulares, que qualquer marqueteiro eleitoral consideraria um suicídio político. Decretou estado de emergência, pediu a todos os setores a redução de 20% do consumo, determinou a interrupção de obras públicas com alto consumo de água e deu prioridade a obras para aumentar a oferta de água. Pouco antes da eleição, divulgou outro pacote, que limitou a utilização de grandes consumidores, como clubes, hotéis e campos de golfe. O consumo caiu. A escassez ainda preocupa, mas começa a apresentar sinais de controle e, ao final, o governador foi reeleito. Por aqui, a escolha foi, desde o início, a negação e o engodo, resultando na queda vertiginosa dos níveis dos reservatórios.
E. Como explicar a disparidade do consumo de água per capita entre países ricos e pobres?
J.A. Duas explicações vêm do modelo econômico baseado na cultura do excesso e do desperdício - que gera, entre outras coisas, a falta de empatia com o próximo - e da adoção de um modelo produtivo predatório. Essa situação é característica de países como Estados Unidos, Espanha, França, Inglaterra, China e Japão, por exemplo. Esses países, especialmente os Estados Unidos, têm uma pegada ecológica (environmental footprint) e um impacto na biocapacidade do planeta muito elevados. Calculada em hectares globais (gha, sigla em inglês), a Pegada Ecológica mede o impacto das ações humanas na biosfera, principalmente o impacto do consumo de bens e serviços sobre a natureza (o quanto de terra é gasto para se produzir o que um ser humano consome em um ano). A biocapacidade, basicamente, mede “a quantidade total de terra e água, biologicamente produtivas, disponíveis para prover bens e serviços do ecossistema à demanda humana por consumo, sendo equivalente à capacidade regenerativa da natureza”. Com aproximadamente 5% da população mundial, os Estados Unidos consomem 20% de toda a energia produzida e geram 40% de todo o lixo. Se todos os habitantes da Terra consumissem como um estadunidense médio, seriam necessários outros dois planetas para suprir a demanda. É óbvio que os padrões têm que mudar. Não se pode admitir projetos arquitetônicos insustentáveis, como os de Dubai ou de Las Vegas, só porque seus gestores podem pagar por eles. É inadmissível que uma criança israelense tenha piscina em sua casa e água disponível às custas da sede de uma criança palestina ou que uma criança brasileira tenha de beber água não tratada porque o Estado permite que a água seja considerada mercadoria.
E. Segundo o Ministério das Cidades, em média, 38,8% da água tratada no Brasil é desperdiçada antes de chegar à torneira...
J.A. É preciso combater de modo impiedoso o desperdício. Adotar tecnologias eficientes de detecção de vazamentos, investir na manutenção periódica de toda a rede e punir os gestores que coadunam com esses níveis absurdos de desperdício. A média nacional é de 38,8%, mas há estados em que os índices beiram os 70%. Buscar a redução drástica das perdas implica em aumentar os investimentos. E isso, por sua vez, implica na diminuição das taxas de remuneração de lucro dos investidores. Resta saber se os gestores públicos estão prontos para colocar o direito humano à água à frente do lucro e ter coragem de fazer o que é correto e justo.
E. A crise no Brasil poderia ter sido evitada? Onde erramos?
J.A. Erramos ao priorizar o lucro e não o ser humano. Se os alertas das entidades de preservação ambiental, de defesa da água, da Agência Nacional de Águas (ANA), das universidades e mesmo dos demais órgãos governamentais tivessem sido ouvidos, não estaríamos passando por essa situação. Há mais de dez anos as autoridades estaduais e a Sabesp sabem que o problema ocorreria, que era necessário minimizar a dependência da região metropolitana de São Paulo ao Sistema Cantareira, que o padrão de chuvas estava mudando, que a capacidade dos reservatórios estava diminuindo constantemente e, principalmente, que se deveria investir mais em novos mananciais e na recuperação de matas e de bacias, bem como na redução de perdas. Mas a opção foi pelo lucro, por não adotar medidas necessárias, por não investir em educação. A região metropolitana de São Paulo já esgotou sua própria capacidade de prover água à sua população há muitas décadas. Além disso, a urbanização predatória e desordenada, a destruição das matas e florestas, a impermeabilização do solo pelo asfalto e pelo concreto, a não captação e tratamento de efluentes (esgoto), a quantidade de resíduos sólidos produzida e o descaso do poder público reforçam a conclusão de que houve uma negligência criminosa.
E. Uma das alternativas oferecidas para resolver a crise é o método de dessalinização da água do mar. Isso seria viável?
J.A. É preciso tomar cuidado para não se pegar o primeiro remédio que se vê na prateleira. O desenho de uma solução duradoura requer levar em conta algo que o poder público, de modo geral, não costuma fazer no Brasil: analisar as características próprias de cada bacia hidrográfica e de seu entorno socioeconômico. Como os interesses econômicos tendem a não considerar as questões socioambientais, e tanto a mentalidade política do país quanto o próprio regime jurídico vigente os priorizam, as medidas comumente adotadas são insustentáveis ou ineficientes a longo prazo. Em geral, a água dessalinizada e a obtida da purificação de esgotos tendem a ter um custo final mais caro. Isso, na perspectiva dos investidores, é ótimo, mas na socioambiental não. Adotar esse tipo de solução em um país com a oferta hídrica e pluvial do Brasil seria o atestado definitivo de nossa incompetência. A prioridade do consumo humano e da saúde pública devem ser a premissa maior.
E. Como a questão do direito humano à água é tratada em outros países?
J.A. Todos os países fronteiriços ao Brasil, que dividem com ele as principais bacias hidrográficas do mundo, por exemplo, reconhecem em algum nível jurídico a prioridade do consumo humano e o direito humano à água e ao saneamento. Dois, inclusive, em nível constitucional (Uruguai e Bolívia). O Brasil não adota esse reconhecimento em nenhum nível normativo. A Lei de Recursos Hídricos somente menciona a prioridade do consumo humano em situação de escassez. Se ela não for decretada, medidas de priorização do consumo humano não podem ser legalmente adotadas. O Chile, que possui 100% da gestão de suas águas privatizada, começa a discutir a reestatização. A Lei de Águas do Peru estabeleceu um mecanismo muito interessante, o Tribunal da Água, uma instância colegiada, administrativa e arbitral que busca solucionar conflitos.
E. Os conflitos por falta de água potável irão aumentar?
J.A. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), divulgados no começo de 2014, de 2002 a 2013 o número de conflitos por água registrado no campo brasileiro cresceu 1.163%. Em 2013, 93 conflitos envolveram mais de 26.000 famílias e ocorreram em todas as regiões do país, sendo 18 no Sudeste.
Moradores da cidade de Cratéus, no Ceará, fazem fila para retirada de água em posto de abastecimento no bairro São Vicente ao custo de R$ 0,50 por galão de 20 litros