Como se deu a inserção da economia brasileira no cenário mundial nos anos 1960 e mais particularmente durante o período da ditadura militar (1964 - 1984)? Como explicar o “milagre econômico” (1968 - 1973), arquitetado pelo economista Antonio Delfim Netto, quando a taxa de crescimento do PIB saltou de 10% para 14% ao ano (com a inflação quase dobrando, de 20% para 35%, e o aumento da concentração de renda e da pobreza)? As respostas não são simples nem dizem respeito a um passado já superado, já que o Brasil ainda convive com as mazelas de natureza política, econômica e social provenientes do modelo implantado pela ditadura.
O primeiro grande problema é a escolha de um modelo teórico-interpretativo que seja capaz de dar conta do objeto em pauta, levando em consideração as especificidades históricas e a totalidade da análise. No Brasil, duas grandes narrativas, ambas de matriz marxista, exerceram e ainda exercem influência decisiva na produção acadêmica sobre o tema: as teorias do imperialismo e da dependência. Gabriela Murua, aluna do curso de pós-graduação em Ciências Sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Unifesp - Campus Guarulhos, resolveu enfrentar aspectos centrais da questão em sua dissertação de mestrado, sob a orientação do professor Javier Amadeo. O trabalho faz parte da linha de pesquisa Pensamento Político e Social, Estado e Ação Coletiva, que – entre seus principais objetivos – se propõe a estudar o pensamento social político no Brasil e na América Latina.
“Analisei como esses estudiosos da teoria marxista da dependência, sobretudo Ruy Mauro Marini, apropriaram-se e ressignificaram as categorias desenvolvidas por teóricos do imperialismo para entender as transformações no modo de acumulação e reprodução capitalista (que dariam forma à fase imperialista do capitalismo) e, ao mesmo tempo, compreendê-las a partir de seu impacto nas economias periféricas, dando ênfase ao modo como a dependência apresentava-se no Brasil, no decorrer das décadas de 1960 e 1970”, diz Gabriela.
A teoria do imperialismo foi formulada no final do século XIX pelo economista britânico John Hobson, hoje considerado um liberal de esquerda, que inscreveu o tema no debate sobre os rumos da economia e da política mundial, ao lançar o livro Imperialismo: um estudo, em 1902. Esse conceito seria depois desenvolvido, sob diversas perspectivas, por autores marxistas – entre os quais, Vladimir Ilitch Lênin, Rudolf Hilferding e Nikolai Bukhárin, cujas contribuições foram analisadas pela pesquisadora.
Para esses autores, o conceito de imperialismo referia-se às transformações ocorridas entre o final do século XIX e o começo do século XX, que alteravam qualitativamente o modo como se acumulava o capital, configurando uma nova fase do capitalismo (para Lênin seria, de fato, o seu estágio mais avançado). Entre as principais transformações estavam a constituição e expansão de monopólios, resultante dos processos de concentração e centralização, a expansão do sistema de crédito e o aparecimento das sociedades anônimas e da bolsa de valores.
Essa nova fase do capitalismo teria como característica principal o predomínio do capital financeiro, que resultou da fusão entre o capital industrial, comercial e bancário, propiciando a constituição de uma oligarquia financeira (síntese das classes dominantes industriais e bancárias), mais poderosa que as classes dominantes anteriores.
Nessa etapa do capitalismo, na qual os monopólios tornam-se essenciais na produção e reprodução do capital, a concorrência atinge níveis elevados, acirrando o conflito entre os capitalistas e entre as grandes potências da época, fato que mais tarde seria central para a compreensão das duas grandes guerras mundiais.
A teoria da dependência, por sua vez, surgiu nos anos 1960 com o objetivo de entender as especificidades da acumulação do capital nas formações econômicas e sociais periféricas. Entre os principais intelectuais que a formularam destacam-se Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Theotonio dos Santos e Vania Bambirra, que buscavam compreender os motivos que impossibilitavam o processo autônomo de industrialização nos países latino-americanos, bem como as causas da profunda crise estrutural pela qual passavam esses países no período mencionado.
Em parte, a teoria da dependência representou uma resposta às proposições desenvolvimentistas oferecidas pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepal) aos países latino-americanos. Os “cepalinos” acreditavam que o subdesenvolvimento fosse uma fase anterior ao desenvolvimento, a qual poderia ser superada por meio de forte intervenção do Estado, mediante a aplicação de políticas que removessem os obstáculos internos e promovessem um desenvolvimento regional autônomo.
Contrariamente a essa visão, os teóricos da dependência argumentavam que, desde sua origem, os mercados latino-americanos buscaram atender às necessidades da expansão industrial europeia. Portanto, o subdesenvolvimento não poderia ser compreendido como um estágio anterior ao desenvolvimento, mas sim como uma estrutura que foi condicionada pelas relações internacionais, estabelecidas de modo dependente. Esses autores denunciaram a subordinação dos países “periféricos” aos países centrais, destacando que as revoluções científico-tecnológica, financeira e de comunicação serviram para tornar mais complexa e ampliar essa subordinação.
Não há uma relação de oposição entre as teorias do imperialismo e da dependência, mas sim diferenças de perspectiva que se complementam. A teoria do imperialismo analisa os processos mundiais a partir dos países centrais: a ação dos monopólios ancorada no poder bélico dos Estados, que partilham entre si o mundo e a apropriação das riquezas naturais, sob a égide do capital financeiro. A teoria da dependência assume uma perspectiva centrada nos países periféricos: as consequências implicadas no processo de subordinação e as possíveis estratégias para sua superação, sem descartar, no caso de alguns autores, a opção revolucionária.
Gabriela Murua, autora da dissertação
Gabriela concentrou sobretudo a terceira parte de seu trabalho nos estudos do cientista social Ruy Mauro Marini, dando ênfase ao conceito de “subimperialismo”. Para esse autor, não houve contradição entre o expressivo crescimento da economia brasileira nos “anos de chumbo” e o aumento da dependência brasileira. O fenômeno pode ser compreendido pela formação do subimperialismo, categoria desenvolvida por Marini para explicar a possibilidade de “subcentros” econômicos e políticos da acumulação mundial alcançarem a fase imperialista do capitalismo, ainda que de maneira dependente.
De acordo com Marini, os subcentros passaram a ocupar uma posição intermediária entre centro e periferia, como resultado da própria lógica de funcionamento das economias dependentes. Apenas a superexploração do trabalho permitiria aos subcentros um acúmulo de capital necessário e suficiente para transferir valor aos países centrais e ainda manter um mercado de consumo nacional organizado por um subsistema regional de poder eficaz.
A autora já visualiza a continuidade de sua pesquisa. No curso de doutorado pretende analisar os 12 anos do governo petista e responder a questões como estas: O país caminha para a superação do subdesenvolvimento, tal qual anunciado por muitos representantes do governo? A categoria do subimperialismo pode ajudar a entender o momento atual? De que modo o capital financeiro aparece no cenário econômico brasileiro? Outro aspecto que deverá problematizar será o grau de nacionalização de empresas ditas brasileiras. “De certa forma buscarei entender, a partir dessas teorias, de que modo a internacionalização de empresas demonstra uma relação de maior dependência do Brasil. A maioria delas não pode ser considerada nacional: constituem sociedades anônimas vinculadas ao mercado financeiro”, conclui.
Artigo relacionado:
MURUA, Gabriela F. Feliciano. Imperialismo e dependência: elementos dialéticos do subimperialismo. 2014. 145 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo.