O processo de criação e instalação do parque industrial de São Paulo, ocorrido entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, constitui uma história de grande significado histórico e cultural, imediatamente perceptível ao observador que percorrer os bairros onde ele ocorreu de forma particularmente intensa, como é o caso do Brás e da Mooca. Construções fabris remetem a um tempo marcado pela chegada de imigrantes que conseguiam emprego e se instalavam em áreas próximas ao local de trabalho, regiões atualmente alvo de intensa especulação imobiliária.
Esse é o tema da pesquisa de doutorado realizada na Universidade de São Paulo (USP) pela arquiteta Manoela Rossinetti Rufinoni, professora do Departamento de História da Arte da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/ Unifesp) - Campus Guarulhos. Sua pesquisa resultou no livro Preservação e Restauro Urbano: Intervenções em Sítios Históricos Industriais, publicado pelas editoras da Universidade de São Paulo (EDUSP) e da Fundação de apoio à Universidade Federal de São Paulo (FAP-Unifesp), premiado na 56ª edição do Jabuti de 2014, obtendo segundo lugar na categoria Arquitetura e Urbanismo. “Fiquei bastante lisonjeada e surpresa, inclusive em função dos temas abordados. Além de se dedicar a arquiteturas e bairros até então pouco apreciados pelos estudos acadêmicos, o livro toca temas delicados, como a questão do papel do arquiteto nas cidades contemporâneas, poucas vezes entendidas em sua dimensão histórica por aqueles que constroem os novos edifícios. Mas eu acredito que o prêmio seja uma indicação de que há vários profissionais percebendo essa necessidade de olhar a cidade de outra maneira”, comenta a autora.
Manoela investigou a atribuição de valores históricos, estéticos e memoriais aos espaços da industrialização, não focando apenas em São Paulo, mas nas grandes cidades em geral. Segundo a professora, uma das grandes novidades do seu trabalho é analisar o conceito de restauro urbano, ainda pouco explorado no Brasil. Diferentemente do conceito tradicional de renovação arquitetônica, que busca preservar determinada edificação, o que está em pauta são as áreas urbanas com algum interesse histórico e cultural.
Em ordem de leitura: Edifício da Companhia Antarctica Paulista; Galpões da Rua Borges de Figueiredo; Armazém da estrada de ferro em frete à estação de trem Mooca; Edifício do Moinho Matarazzo, no Brás; Remanescentes de antiga fábrica de estopas e edifícios residencias ao fundo
“O foco do trabalho são as antigas áreas industriais, pois têm sido identificadas como patrimônio apenas em tempos recentes e estão ameaçadas por um acelerado processo de esvaziamento e degradação. Devido à extensão que geralmente ocupam, esses sítios históricos são vistos como grandes manchas de terreno ocioso em áreas estratégicas da cidade ”, comenta a pesquisadora. Essas regiões passam, atualmente, por um processo agressivo de valorização imobiliária, sobretudo por estarem localizadas próximas aos centros urbanos e a estações de trem e metrô, além de serem bem servidas em termos de infraestrutura (saneamento, comunicações e serviços essenciais).
Professora Manoela Rossinetti Rufinoni, autora do livro
O mercado imobiliário, em busca do lucro, ameaça derrubar esses edifícios históricos, porém obsoletos, e construir condomínios residenciais. Essa questão, afirma Manoela, coloca um desafio para os profissionais que têm a metrópole como foco de seu trabalho e de suas reflexões: quais são as opções colocadas face ao embate entre o valor cultural e o de mercado?
“O ideal seria que aqueles que atuam sobre a cidade – o arquiteto, o planejador urbano, o administrador público – começassem a se valer de instrumentos que permitissem ver a cidade de outra maneira para intervir sobre ela em uma perspectiva de respeito ao passado, respeito à história, buscando um diálogo”, afirma.
A região analisada em São Paulo faz parte da operação urbana denominada Mooca-Vila Carioca, compreendendo uma área que vai da divisa com São Caetano do Sul até as proximidades do Pari, abrangendo toda a via férrea e seu entorno imediato. Manoela não propõe que toda essa área seja tombada, mas que se faça uma reflexão mais atenta sobre o que existe nesse longo percurso de interesse patrimonial, buscando alternativas de renovação urbana mais criteriosas e menos destruidoras.
Uma discussão muito presente ao longo do livro é a relação conturbada entre o passado e o futuro, entre o antigo e o novo na cidade contemporânea. Em vários projetos de intervenção urbana no Brasil ainda prevalece a visão segundo a qual o desenvolvimento está associado ao projeto do novo e ao apagamento do passado. No entanto, quem constrói o novo nas cidades brasileiras, em grande medida, é a especulação imobiliária. “São construtoras e grandes empreendedoras que não estão participando de uma discussão sobre a qualidade arquitetônica e a qualidade urbana das cidades. O ‘novo’, nesse caso, é um produto meramente voltado para o mercado”, diz a pesquisadora.
Sua pesquisa foi realizada por meio de um financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com um período fora do país por meio de uma bolsa para cursar um doutorado sanduíche. Assim Rufinoni pôde realizar metade de sua pesquisa em São Paulo e a outra parte na Itália, na Università degli Studi di Roma La Sapienza. Essa experiência foi enriquecedora, pois permitiu que ela estudasse a discussão teórica no ambiente europeu e o contexto da preservação urbana nas cidades italianas. Lá os sítios históricos são numerosos e os debates acerca das intervenções de modernização em contextos urbanos antigos foram intensos ao longo do século XX, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, tanto em ambiente acadêmico quanto em órgãos governamentais voltados à tutela dos bens culturais. Isso é distinto na situação brasileira, onde a valorização do passado das cidades ainda é recente e o projeto do novo geralmente é exaltado como progresso.
Outra questão que difere nos dois contextos é a legislação existente para a proteção de áreas de interesse histórico e cultural. Na Itália, a tradição de discussão sobre o tema permitiu a elaboração de uma série de leis que regulamentam a intervenção arquitetônica e urbana em bens de interesse patrimonial. Esse aparato jurídico denso nem sempre consegue evitar projetos polêmicos e agressivos, mas é uma base mais sólida para uma mobilização maior entre arquitetos e na própria sociedade em defesa da preservação. Aqui no Brasil, o principal instrumento de proteção é o tombamento e sua aplicação para áreas urbanas ou além de gerar polêmica, nem sempre surte real efeito, já que foi originalmente pensado para a tutela de edifícios isolados.
“Áreas muito extensas e em processo de transformação, com são os sítios históricos industriais paulistanos, dificilmente poderão ser totalmente tombadas. Mas não precisamos pensar no tratamento do patrimônio apenas a partir do tombamento. É importante amadurecermos uma leitura de cidade que nos faça compreendê-la em perspectiva histórica, assumindo a cidade como um dado a ser valorizado pelos novos projetos arquitetônicos e urbanos. Transformações são necessárias, certamente, mas precisam ser conduzidas de forma criteriosa, respeitando nossa história e nossa memória”.
Segundo a Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, são 157 bens tombados na cidade. Na área de estudo abarcada pelo livro estão, por exemplo, a Hospedaria dos Imigrantes, que atualmente abriga o Museu da Imigração (localizado na Rua Visconde de Parnaíba), as Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo (Brás), o Palácio das Indústrias (Parque Dom Pedro II) e algumas vilas operárias como a Vila Maria Zélia (Belenzinho). Já em nível municipal, um tombamento significativo na área é o perímetro formado pelas ruas Borges de Figueiredo, Monsenhor João Filipo, Avenida Presidente Wilson e viaduto São Carlos, na Mooca, abrangendo vários galpões industriais.
Na Unifesp, Rufinoni leciona a disciplina Museologia e Patrimônio na graduação em História da Arte. Também integra o corpo docente do recém-inaugurado programa de pós-graduação da área. Ela enxerga uma perspectiva interessante sobre o tema, a possibilidade de inserir essa discussão do patrimônio no campo da História da Arte.
“Quando falamos sobre Arquitetura e cidade muitas vezes surge a dúvida se seriam temas de interesse para essa disciplina. Eu vejo que sim, os estudos de Arquitetura e de História da Arte podem e devem se aproximar mais e explorar os instrumentos de análise de cada disciplina numa via de mão dupla. E o patrimônio é apenas um dos caminhos nesse sentido. Assim como entendemos hoje o patrimônio em uma perspectiva mais estendida (incorporando bens arquitetônicos e urbanos de tipologias diversas), também no campo da História da Arte e da produção artística, o interesse de estudo tem se alargado a artefatos diversos, de um objeto isolado à própria cidade. O grafite, por exemplo, é uma intervenção artística que assume a cidade como dado cultural, como matéria prima do próprio fazer artístico. Os novos projetos arquitetônicos e urbanos poderiam explorar postura semelhante, não? Seria um debate interessante”, conclui Manoela.
Capa do livro premiado
Artigos relacionados:
RUFINONI, Manoela Rossinetti. Territórios portuários, documentos de história urbana: as intervenções no porto de Gênova e os desafios da preservação. Cidades, Comunidades e Territórios, Lisboa, n. 29, 2014. Disponível em: <http://cidades.dinamiacet.iscte-iul.pt/index.php/CCT/article/view/337>. Acesso em: 30 abr. 2015.
______. Os estudos de Estética Urbana e a percepção da cidade artefato no alvorecer do século XX. Revista CPC, São Paulo, n. 14, p. 6-29, 2012. Publicação da USP. Disponível em: <dx.doi.org/10.11606/issn.1980-4466.v0i14p6-2>. Acesso em: 30 abr. 2015.
______. Intervenções urbanas em sítios históricos industriais: o projeto urbano Ostiense Marconi. Pós: Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP, São Paulo, v. 19, n. 32, p. 62-79, 2012. Disponível em: <dx.doi.org/10.11606/issn.2317-2762.v19i32p62-79>. Acesso em: 30 abr. 2015.
______. A cidade e seus bens culturais: a dimensão urbana da tutela na abordagem dos documentos internacionais. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, São Paulo, v. 40, p. 223-257, jan.-jun. 2010. Publicação da PUC-SP. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/6131/4453>. Acesso em: 30 abr. 2015.