Entreteses

logo_unifesp

Vidas precárias no centro de São Paulo

Pesquisador estuda a condição e a trajetória da mulher em situação de rua na capital paulista

Foto de uma mulher. É noite e ela está sentada na rua, com alguns de seus pertences - sacolas - em uma caixa. No topo da imagem, em um placa de loja está a frase "Viva a diferença"

* As fotografias que ilustram a matéria são de Mariana Batistini

Os estudos de Anderson Rosa sobre a população em situação de rua tiveram início em 2002. Com graduação e mestrado em Enfermagem pela Escola Paulista de Enfermagem (EPE) da Unifesp – Campus São Paulo, onde completou seu doutorado na mesma área em 2012 com a tese “Mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo: um olhar sobre trajetórias de vida”.

A história por trás da tese é bastante peculiar. Enquanto desenvolvia o mestrado sobre o sentido de vida para homens em situação de rua, Anderson foi abordado por uma mulher que pediu para ser entrevistada. O pesquisador tentou explicar que entrevistaria apenas homens devido ao plano do estudo em desenvolvimento, mas a senhora foi insistente, o acusou de discriminação e Anderson parou para ouvi-la.

“Quando eu fiz isso,  criei um problema enquanto pesquisador, porque ela trouxe questões importantes, que a gente não havia pensado para a dissertação.   Tínhamos a impressão de que o universo da mulher em situação de rua era completamente diferente. Foi então que surgiu a ideia de fazer um doutorado abordando a questão do gênero e da mulher”, comenta.

Uma das dificuldades que Rosa teve foi a de construir referências seguras para falar e estudar sobre o universo feminino.

“Primeiro, houve uma crise pessoal do ‘eu homem’ pesquisar o universo feminino, mas foi um processo interessante”, explica. A orientadora Ana Brêtas, professora da EPE, indicou autores que estudavam a questão do gênero e discutiam o feminismo. Rosa concluiu que a partir do momento em que a questão social é trazida para a universidade, o enfermeiro adquire uma nova perspectiva crítica e analítica.

“Há pessoas que falam que na cidade de São Paulo vivem ‘apenas’ 14 mil pessoas em situação de rua. Se fosse uma pessoa já seria um problema; 14 mil constituem um problema social e econômico enorme. A hora que nós trazemos isso pra área da saúde, nós temos que ser enfermeiros diferentes”, afirma Ana.

Fotografia de uma mulher no centro de São Paulo. Ela atravessa a rua com algumas sacolas e uma mala. Na imagem também aparece uma placa com os dizeres "São Paulo cuidando da gente"


Utilizar a cartografia como principal ferramenta na metodologia de pesquisa foi um diferencial no estudo. O método permite mais liberdade de pesquisa, não limitando o estudo a um ponto fixo. A partir do censo feito pela Prefeitura de São Paulo, em 2009, Rosa estabeleceu as diretrizes iniciais do projeto. “Baseamos-nos nos três distritos administrativos que tinham mais mulheres em situação de rua na cidade: Sé, Santa Cecília e República. A ideia era entender o universo do morador de rua, mas fora dos equipamentos sociais, porque desde então, tudo que nós havíamos estudado estava dentro de um centro comunitário ou de outros equipamentos. Bem ou mal, é um ambiente protegido, mas que não abriga todo mundo. Tem morador de rua que está fora desse equipamento. Então a gente queria incluir essa porcentagem de pessoas. Começamos o trabalho de campo, que durou um ano”, pontua Rosa.

A dificuldade inicial da pesquisa de campo foi abordar e conseguir estabelecer  uma relação de confiança com as mulheres. Entre sucessos e fracassos, o pesquisador aprendeu a interagir com as mulheres nas ruas e, posteriormente, em um Centro de Acolhida, cumprir a etapa de coleta de dados. Rosa fala ainda sobre a responsabilidade do pesquisador ao utilizar a técnica da entrevista: “À medida que alguém pede para as pessoas falarem da vida, feridas são abertas,  a pessoa lembra de coisas que talvez queira esquecer. Em alguns momentos a gente parava a entrevista pra fazer  algum tipo de acolhida, pra tentar resolver algum sofrimento que havíamos  causado em função da entrevista e muitas vezes a relação de vínculo era criada ou fortalecida a partir daquele momento”, explica.

A população em situação de rua carece de atenção, de ser olhada e ouvida. O diário de campo com a observação  de mais de 100 mulheres e os relatos de 22 mulheres entrevistadas ajudou o pesquisador a constituir um material composto de histórias de vida. Empolgados, ele e a orientadora, pela riqueza dos dados obtidos, enfrentaram a grande dificuldade de saber o momento de finalizar a fase de coleta de dados, e posteriormente de analisá-los,  conferindo consistência teórica e metodológica à tese.

A pesquisa foi feita sem financiamento público. Foi o próprio pesquisador quem pagou as idas e vindas ao centro da cidade, albergues e centros comunitários. Rosa relata que ficou sensibilizado com o descaso por parte das autoridades em reconhecer a cidadania das pessoas em situação de rua. Por vezes, se gasta mais energia com repressão e medidas higienistas do que com o cuidado para atenuar o sofrimento e com estratégias para que a rua não seja a única opção de vida dessas pessoas. 

Uma mulher está sentada na rua, entre sacos de lixo, enrolada em um cobertor velho.

 

Alguns itens - sacolas, flores, roupas - estão na calçada; atrás deles, em uma parede, está escrito "Eu sei que ela nunca compreendeu... os meus motivos de sair de lá... 'mais' ela sabe que depois que cresce o filho vira passarinho e quer voar...


Na época em que Rosa deu os primeiros passos nos estudos sobre a rua, 12 anos atrás, não existiam políticas públicas ou discussões para fundamentá-las, a fim de criar um espaço de debate sobre a mulher no espaço da rua. Hoje, o cenário se mantém. Apesar de verificar algumas mudanças e até avanços, o pesquisador diz que não há, nas políticas  destinadas à população em situação de rua, a distinção das diferenças de gênero, o que agrava a exclusão social das mulheres e outras minorias nas ruas. “Na área da saúde temos um trabalho consistente, mas precisamos de ações e políticas públicas intersetoriais para cuidarmos dessas mulheres de forma integral”, lamenta.

O estudo não visa estabelecer o comparativo entre gêneros, mas as diferenças entre o homem e a mulher em situação de rua são muitas. A rua é por si só um ambiente predominantemente masculino. Enquanto muitas mulheres vão para as ruas num ato libertador, fugindo de situações de violência doméstica, os homens chegam a esse meio por conta da falência. A sociedade machista que tem na figura do homem o provedor e chefe de família, é a mesma sociedade que julga correto o espancamento de mulheres. Enquanto o Estado falha na garantia de segurança e eficácia das leis que são criadas para a proteção da mulher, mais delas vão para as ruas. “Não precisa que a mulher esteja na rua para ser olhada. O cuidado com a violência doméstica, com a vulnerabilidade social deve ser intensificado, aponta Rosa.

O projeto não trabalha com conclusões, mas considerações. Como já mencionado, além de cuidar da mulher em sua vulnerabilidade, esses espaços devem ser pensados para acolher as mulheres em situação de rua. O pesquisador diz não concordar com o estabelecimento de espaços femininos e masculinos. Ele acha essa mistura saudável, no entanto, a infraestrutura dos equipamentos sociais precisa garantir condições para que a mulher atenda suas necessidades de cuidados corporais, de higiene, de repouso, entre outros. A questão da sexualidade aparece de modo bastante forte: a mulher não deve somente ganhar o preservativo, ela deve ser conscientizada sobre os métodos de uso.

Outro fator, talvez o principal deles, diz respeito ao trabalho dos órgãos responsáveis pelos projetos voltados à população de rua, que deve ser interdisciplinar. “O trabalho na rua precisa ser intersetorial e interdisciplinar. Não adianta a gente achar que só a Saúde vai dar conta, que só a Ciência Social vai dar conta. A gente precisa criar portas de saída. Tudo que temos percebido em relação ao cuidado com a população de rua está caminhando no sentido de tornar a vida na rua mais saudável, o que é bom, mas a gente não observa o projeto de que a saída da rua seja uma opção. Talvez algumas das pessoas optem mesmo por continuar na rua e isso tem que ser um direito respeitado. Mas outras querem sair e a gente não está conseguindo o apoio necessário. Esse amparo tem que ser intersetorial, temos que ver a questão das drogas de forma sincronizada com a questão do trabalho, da moradia, da autossuficiência de renda. Acho que é o que temos que evoluir. Há grupos discutindo essas coisas, mas a política ainda não tem sido induzida dessa forma”, analisa o pesquisador.

Em geral, quem perde está no lado mais fraco. Existe um problema político e social envolvido na questão da moradia no centro da cidade, que é a política de revitalização do centro da capital. A população em situação de rua fica a mercê dos interesses imobiliários que cobiçam a área.
Os investimentos imobiliários especulativos, por conta da Copa do Mundo de 2014, reorientam as políticas públicas. Os lugares estão sendo disputados e o morador de rua é a parte mais frágil em questão. Por isso,  tendo em vista as questões concretas colocadas pela conjuntura, a pesquisa tentou manter no horizonte a busca de uma perspectiva capaz de melhorar a qualidade de vida dessa população.

O trabalhou gerou o livro “Enfermagem e saúde: olhares sobre a situação de rua” pela editora CRV, coletânea dos trabalhos desenvolvidos nessa área ao longo dos 12 anos de estudo.

Retrato da orientadora, Ana Brêtas, e do pesquisador, Anderson da Silva

Ana Brêtas e Anderson da Silva Rosa


Pesquisa: Mulheres em situação de rua na cidade de São Paulo: um olhar sobre trajetórias de vida
Autor: Anderson da Silva Rosa