Ao contrário do que supomos comumente, as pesquisas mostram que os saberes ensinados na escola não são meras adaptações das ciências, dos saberes científicos. Há todo um processo, no interior da própria escola, que transforma os anseios sociais sobre o que ensinar naquilo que, de fato, faz parte do dia a dia das aulas. E esse processo pode ser compreendido estudando-se a história da Educação e das disciplinas escolares. Quem expõe essas considerações é a doutoranda Nara Vilma Lima Pinheiro, vinculada ao programa de pós-graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Unifesp – Campus Guarulhos – e autora da dissertação de mestrado sobre a trajetória do ensino de Matemática nos anos iniciais do ensino fundamental.
Por conta das dificuldades apresentadas nas avaliações escolares, a Matemática é uma das disciplinas que mais chamam a atenção e requerem o desenvolvimento de estudos pedagógicos. A pesquisa mencionada, que se intitula Escolas de Práticas Pedagógicas Inovadoras: Intuição, Escolanovismo e Matemática Moderna nos Primeiros Anos Escolares, analisa ao longo do tempo as propostas inovadoras para o ensino de um dos primeiros temas matemáticos presentes na escola: o conceito de número. Foi apresentada no âmbito do programa de pós-graduação já referido, dando origem a um pôster de divulgação que recebeu menção honrosa durante o V Fórum Integrador de Pesquisadores da Unifesp.
Adotou-se, no caso, um recorte temporal de quase 100 anos (1880 a 1970), durante o qual foram selecionadas três instituições que serviram de modelo para as demais e que representaram os períodos de inovação no ensino da Matemática: Escola Americana (1880-1920), Escola Normal da Praça (1930-1950) e Escola Experimental Vera Cruz (1960-1970).
Em diferentes momentos históricos, foram mobilizados elementos com vista à renovação dos métodos e conteúdos de ensino que poderiam proporcionar aos alunos condições mais favoráveis ao aprendizado da Matemática. Em específico, um dos expedientes presentes nessas propostas inovadoras dizia respeito ao uso de materiais didáticos que poderiam auxiliar o professor. Diferentes processos de ensino usaram desde materiais encontrados no dia a dia até sofisticados conjuntos de formas, elaborados para atender à chamada Psicologia Cognitiva.
A Escola Americana, a primeira estudada, associada à religião protestante e berço da atual Universidade Mackenzie, aboliu a prática de castigos físicos e estipulou o ensino por série, graduado, inovando no ensino de Matemática. Além disso, importou dos Estados Unidos o chamado ensino intuitivo. Nele a novidade era o objeto usado: materiais de uso diário (palitos e sementes, por exemplo), incorporados para facilitar o aprendizado. “Em se tratando do conceito de número, o primeiro conteúdo matemático ensinado, a professora levava os objetos e transformava-os em objeto de ensino por meio do diálogo, pergunta e resposta”, explica Nara.
No fim da década de 1920, outro movimento de inovação começa a vigorar – a Escola Nova –, destacando-se nesse cenário a Escola Normal da Praça, focada na experimentação da criança. No caso da Escola Americana, a criança passava a manipular os objetos apresentados pelo ensino intuitivo, e seu interesse era despertado quando aprendia noções matemáticas de forma natural, diz Nara. Já na Escola Nova, o processo era diferente: o interesse era o ponto de partida, motivado por jogos, histórias, cantigas e contos que estimulavam a atenção do aluno. O conteúdo era passado numa segunda etapa.
A partir da década de 1960, o movimento da Matemática Moderna propôs um novo método, implantado pela Escola Experimental Vera Cruz. O conceito de número deixou de ser o primeiro conteúdo a ser ensinado, por ser algo muito abstrato. A criança deveria, antes, aprender outros conceitos.
“Assim, ela iria estudar elementos da teoria dos conjuntos, aprender a classificar, a ordenar e depois entraria no conceito de número”, explica Nara. Os materiais concretos ou “estruturados” – que ainda fazem parte do ensino – tinham a função de tornar o aprendizado mais fácil, pois permitiam que o aluno entendesse a dinâmica de funcionamento daquele conteúdo.
A Escola Normal da Praça – que já absorvera os princípios da pedagogia escolanovista – ministrava um curso para formação de professores e, junto a ela, funcionava a Escola Anexa de ensino primário, cujo objetivo era treinar os professores que lecionavam na rede pública.
“Acreditamos que cada escola possui uma cultura própria, onde as políticas acontecem. Ela influi, de certa maneira, em tudo o que ocorre no processo de aplicação das reformas e nas políticas públicas”, esclarece Nara. A escolha pelo ensino primário foi determinada pelo fato de todos os projetos do Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática (GHEMAT) – a partir do qual o trabalho dissertativo foi realizado – incidirem sobre essa faixa escolar. Além disso, o objeto de estudo faz parte do programa de pós-graduação, que é focado na infância e adolescência.
A ideia inicial do projeto – conforme esclarece a autora – ocorreu quando estava na graduação. Na época, a pesquisadora conheceu o GHEMAT, que é coordenado por seu orientador, o professor adjunto Wagner Rodrigues Valente, da EFLCH da Unifesp – Campus Guarulhos. “O grupo é composto por pesquisadores de Matemática de vários Estados brasileiros que trabalham com projetos temáticos, e o meu é um deles.”
Materiais utilizados para o ensino intuitivo
Importado dos EUA, o ensino intuitivo utilizava-se de objetos como tornos, tábuas pequenas, pauzinhos, sementes e mapas de Parker para facilitar o aprendizado
Materiais utilizados para o ensino escolanovista
Na primeira etapa do aprendizado escolanovista, o interesse pela matéria era motivado por jogos, histórias e cantigas. Nas fotos, respectivamente na primeira e segunda fileiras (da esquerda para a direita), árvore de cálculo, encartes da revista Billiken, jogos de calcular e frações
Materiais utilizados para o ensino de Matemática Moderna
Materiais estruturados, como blocos lógicos ou multibase, ainda utilizados no ensino de Matemática Moderna, permitem o entendimento da dinâmica de funcionamento do conteúdo trabalhado
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VALENTE, W. R.; PINHEIRO, N. V. L. Práticas pedagógicas para a construção do conceito de número: o que dizem os documentos do arquivo Lucília Bechara Sanchez? Zetetiké – Revista de Educação Matemática, 2014.
PINHEIRO, N. V. L. Dos materiais concretos aos estruturados: as transformações na abordagem do conceito de número na escola primária. In: ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 11., 2013, Curitiba. [Curso de curta duração ministrado].
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Edição 02 • Junho 2014