Apesar de as doenças infecciosas e parasitárias ainda serem o motivo de várias mortes entre a população indígena do Xingu, é a prevalência cada vez maior de doenças crônicas – como hipertensão arterial e diabetes mellitus – que está deixando especialistas de sobrealerta e preocupados com o futuro dessa população.
Uma pesquisa coordenada pela professora do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Unifesp – Campus São Paulo – e do programa de pós-graduação em Saúde Coletiva, Suely Godoy Agostinho Gimeno, apontou que 10,3% dos indígenas, tanto do sexo masculino quanto do feminino, apresentam sintomas de hipertensão arterial.
A intolerância à glicose foi observada em 30,5% das mulheres – quase 7% com diabetes mellitus – e em 17% dos homens. A dislipidemia (presença excessiva ou anormal de colesterol e triglicerídeos no sangue) foi detectada em 84,4% dos participantes da pesquisa. Por fim, constatou-se que 57% dos homens e 36% das mulheres sofria com excesso de peso. Já a obesidade central (acúmulo de gordura na parte superior do corpo) predominou entre as indígenas com 68%.
“Um achado importante foi que, pelos dados da impedância bioelétrica (resistência e reactância) que são uma ‘proxi’ da composição corporal dos sujeitos, observou-se que a elevada prevalência de excesso de peso, particularmente entre os homens, se deve à maior quantidade de massa muscular e não de gordura corporal”, diz a pesquisadora. Isso sugere que esses indivíduos são musculosos, por serem ativos, e não obesos, refutando a ideia de que o sedentarismo estaria relacionado com as doenças crônicas encontradas. Desse modo, o excesso de peso deve ser analisado de outra maneira.
Os dados foram colhidos de 179 indígenas da tribo Khisêdjê, na aldeia principal Ngojwere – Posto indígena Wawi – no Parque Indígena do Xingu, em dois períodos: julho de 2010 e agosto e setembro de 2011. Na ocasião foram realizadas entrevistas, exames e testes físicos por uma equipe composta por médicos, enfermeiras, nutricionistas, educadores físicos, graduandos do curso de Medicina e de Enfermagem, além de um sociólogo. Agentes de saúde e professores indígenas, que vivem na aldeia Ngojwere, atuaram como intérpretes e ajudaram a estabelecer a comunicação para a coleta de dados.
Tratamento depende de infraestrutura
O tratamento dos indígenas, que apresentam sintomas das enfermidades investigadas, particularmente do diabete mellitus, às vezes é complicado, pois demanda condições especiais nem sempre disponíveis nas aldeias. “A insulina precisa estar em constante refrigeração, os medicamentos necessitam de controle da dose e de horário, e os níveis de glicemia e da pressão arterial precisam ser monitorados regularmente”, explica Suely.
Os indígenas que precisam de acompanhamento médico continuam sendo atendidos e monitorados pela equipe de saúde da Unifesp, na Unidade de Saúde e Meio Ambiente do Departamento de Medicina Preventiva da EPM. “Os Khisêdjê desejavam conhecer seu atual perfil de saúde no que diz respeito à presença de doenças crônicas”, afirma a pesquisadora. “Além da importância científica e acadêmica dessa investigação, atendemos também uma demanda dessa comunidade”.
Equipe de pesquisa em 2010
Equipe de pesquisa em 2011
Mudança de hábito
Essas doenças crônicas podem estar relacionadas à crescente exposição dos índios aos centros urbanos, o qual estimula o consumo de alimentos industrializados e o trabalho em atividades remuneradas, entre outros comportamentos absorvidos por eles que substituem as tradições alimentares e cotidianas dos índios, mudando a relação destes com o trabalho, terra e alimentação.
De acordo com Suely, a preservação dos hábitos e costumes desses povos seria uma medida preventiva de grande valia. Como exemplo de tal iniciativa, os membros do grupo estão auxiliando os profissionais da equipe de saúde que atua no Polo Wawi a organizar e realizar um diálogo intercultural, proposto na forma de oficina de culinária. A ação busca informar aos Khisêdjê sobre o uso correto da nossa alimentação (não indígena) e valorizar sua dieta tradicional.
Suely ainda avalia que a garantia da terra e dos territórios indígenas também é fundamental, já que eles dependem dela para sua sobrevivência por meio da caça, pesca, cultivo e coleta de alimentos. “Além disso, algumas políticas públicas podem agravar o problema como, por exemplo, a de distribuição de cestas básicas para esses indivíduos”, afirma. “É preciso que tais iniciativas respeitem as diferenças culturais existentes entre os indígenas e os não indígenas”, completou.
Para a professora Suely, o fato de existir um histórico de violência na relação com os indígenas não representou um problema no convívio com os médicos, pois como a equipe está presente no Xingu desde 1965, a relação está consolidada e bem estabelecida. “É preciso considerar que se comete um equívoco quando se fala de ‘gerenciamento’ de população indígena brasileira”, disse.
Ainda segundo ela, algumas distinções têm que ser feitas não apenas do ponto de vista de suas condições de saúde ou de convívio com a sociedade não indígena. A diversidade da organização da sociedade indígena, a qual possui 305 povos e 274 línguas distintas, com seus inúmeros mitos e ritos, envolve e orienta a vida cotidiana. A heterogeneidade se reflete nas relações (pacíficas ou conflituosas) com os não indígenas.
As dificuldades encontradas na operação logística, necessária à permanência de todo o grupo na aldeia, foram marcantes. Entre elas está o deslocamento, de São Paulo até a aldeia, dos equipamentos de uso pessoal e coletivo, das redes para dormir e de todos os aparelhos usados na coleta de dados. Assim como o transporte, de Canarana ao Posto Indígena Wawi, dos produtos de higiene/limpeza não perecíveis e combustível (utilizado tanto para a manutenção do gerador, quanto para o veículo que transporta a equipe de pesquisa entre as aldeias). O deslocamento da equipe se deu por via aérea de São Paulo a Goiânia e terrestre de Goiânia a Canarana por meio de ônibus comercial. De Canarana ao Posto Wawi, foi utilizado um transporte contratado para esse fim. Fazendo o mesmo trajeto no retorno.
A pesquisa originou, até o presente, seis apresentações em conferências internacionais, duas em congressos nacionais, três dissertações de mestrado e uma publicação de artigo na revista Cadernos de Saúde Pública. Outras duas teses de doutoramento encontram-se em andamento.
Acompanhamento antigo
Os índios, desde o início da colonização portuguesa em 1500, sofrem com as doenças trazidas pelos não indígenas. A convivência com estes resultou, e ainda resulta, em doenças graves, com altas taxas de mortalidade entre os povos indígenas. Milhares morreram no contato direto ou indireto com os europeus e as doenças trazidas por eles, pois não possuíam imunidade natural. Gripe, sarampo, coqueluche, tuberculose, varíola e sífilis são alguns dos males que vitimaram sociedades indígenas inteiras.
A EPM passou a responder, em 1965, pela assistência à saúde dos indígenas que viviam no Parque do Xingu. Naquela época, a malária era uma das principais razões de mortalidade em todas as faixas etárias, enquanto que as infecções do trato respiratório e as doenças diarreicas eram os problemas mais comuns entre os mais jovens. Atualmente, a malária está controlada. O que preocupa, hoje, são as já mencionadas doenças crônicas (hipertensão, diabetes mellitus, intolerância à glicose, entre outras).
Pesquisa: Perfil nutricional e metabólico de índios Khisêdjê
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Edição 02 • Junho 2014