*As fotografias que ilustram a matéria são da pesquisadora Elizane Henrique de Mecena
A situação estrutural da escola e a área ao redor dela caracterizam o ambiente que é frequentado por alunos, professores e funcionários, podendo ser, entre outras causas, agravantes do fracasso escolar. A conclusão é de uma pesquisa realizada pela pedagoga Elizane Henrique de Mecena, apresentada como dissertação de mestrado na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Unifesp – Campus Guarulhos.
Sob orientação de Marcos Cezar de Freitas, livre-docente e coordenador do programa de pós-graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência, a pesquisadora analisou as causas do baixo desempenho da escola que recebeu os piores índices entre todas as existentes em região periférica da cidade de São Paulo, de acordo com o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp). “O fracasso escolar é atravessado pela forma como o cotidiano social chega e impacta um lugar específico, a saber, as periferias das grandes cidades”, afirma Elizane.
O olhar da pesquisa voltou-se prioritariamente para o interior da instituição e seus principais personagens. “Nossa proposta foi a de mergulhar no cotidiano das pessoas que, de alguma forma, estavam vinculadas (simbólica ou diretamente) à escola, e compreender as nuances do fracasso escolar a partir das representações dos que o vivenciaram”, explica a pesquisadora. Assim, a situação estrutural da escola pesquisada e a área que a circunda determinam o contexto a que têm acesso os alunos, professores e funcionários e são agravantes do fracasso escolar.
“O ‘esquecimento’ político predominante, perceptível nas ruas abandonadas e cobertas pelo lixo nos bairros mais distantes das metrópoles, é também sentido no cotidiano da escola, em particular sob a forma de ausência dos professores. Além disso, a falta de água que atingia a escola e o atraso na chegada de materiais didáticos – habitualmente enviados pelo governo para o início das aulas – também são pequenos exemplos de que o fenômeno não se processa fora de seu lugar de origem”, argumenta Elizane.
Entre os fatores que compõem o processo de fracasso escolar está o absenteísmo dos professores, em geral desmotivados pelas diversas barreiras que enfrentam ao longo de sua trajetória profissional. Elizane cita ainda outros exemplos, como a condição estrutural da escola, inapropriada para comportar a demanda de alunos, e o fraco desempenho do alunado. “A baixa expectativa com relação ao uso do espaço escolar, pouco atraente para os alunos, profissionais do ensino e familiares, e o próprio resultado cotidiano dos alunos são evidências de que a escola é, infelizmente, palco de vivência do que geralmente chamamos de fracasso escolar”, continua a pedagoga.
As 1.400 horas de pesquisa de campo foram empregadas na tentativa de criar uma base para a compreensão do fracasso escolar, a partir das indicações fornecidas pelos próprios envolvidos no ambiente da instituição. A pesquisadora estava determinada a dar voz aos excluídos, normalmente percebidos apenas como números de uma análise estatística. “Um diferencial importante foi poder enxergar o fracasso além do fracasso; dar voz a um grupo de pessoas encerradas em suas próprias vidas”, diz. “Lembro-me de ter ouvido de diversos professores, funcionários da escola, alunos, familiares e moradores que ninguém queria saber deles e de suas existências.”
O diário de campo, as entrevistas e o grande diferencial do projeto – o registro fotográfico – integraram o método de trabalho adotado, baseado no conceito etnográfico (o contato intersubjetivo entre o pesquisador e a comunidade). “A etnografia como metodologia é inescapável, porque é o recurso que temos para nos aprofundarmos nas pesquisas”, explica Marcos Cezar de Freitas.
A fotografia, paixão antiga da pesquisadora, permitiu-lhe maior aproximação da comunidade. “Eles não estavam somente sendo ouvidos, estavam sendo fotografados também.”

Lousa de sala de aula em péssimas condições de uso
Apenas números
Os graves problemas estruturais das escolas brasileiras são, não raro, reduzidos a meros índices de desempenho, mesmo por parte de instituições governamentais, que deveriam ter como principal preocupação desenvolver estudos para superar as dificuldades apontadas.
O orientador, de sua parte, questionou os sistemas de avaliação, em geral nem um pouco condizentes com a realidade das escolas de periferia. “A avaliação pode ser um processo positivo e necessário. Contanto que efetivamente não seja um instrumento de regulação, controle e disciplinarização”, esclarece.
Os questionamentos de Elizane também foram feitos nesse sentido, principalmente levando-se em conta o fato de que a esfera da escola não se limita somente ao âmbito pedagógico, mas também integra o cultural e o social. Para fazer uma crítica adequada dos sistemas e métodos de avaliação, a pesquisa, que é interdisciplinar, combinou contribuições da Antropologia, da Sociologia e da Pedagogia.
Elizane explica que a dificuldade maior, apesar do esforço necessário para produzir o conteúdo, foi lidar com a violência urbana, muito alta na região. Para contornar essa situação, recebeu ajuda de um policial e não se intimidou.
Freitas também se referiu a essas dificuldades, mas enalteceu o fato de a pesquisa retratar a realidade, sem deixar de dar voz a quem realmente pertencia à escola, mesmo que indiretamente.
“A maior dificuldade é deixar a realidade falar. Praticar o autopoliciamento e evitar que nos dirijamos à realidade para comprovar categorias que já conhecemos”, acentua. “A coisa mais fácil, em situações como essa, é trabalhar com dualidades falsas, descrevendo o céu onde eu estou e o inferno onde eles moram. Só é possível conhecer o cotidiano das pessoas se o vivenciarmos para tirar dele uma teia de significados.”
Elizane e Freitas conseguiram reunir um amplo material sobre as dificuldades enfrentadas pelas crianças que vivem e estudam nas periferias. “A pesquisa permitiu aproximar-me de uma realidade documentada mas, diante da perspectiva de quem a vive, ainda temos muito campo de estudo, e muitos são os caminhos que se inter-relacionam no que chamamos de fracasso escolar, ainda mais em um campo específico como são as periferias das grandes cidades”, afirma a pesquisadora.

Sala de aula que foi incendiada em um final de semana

À esquerda. a via de entrada da escola - demonstração de abandono. No centro, acima, evidenciando o desinteresse pelas aulas, alunos abandonam os livros na sala de aula. Centro, abaixo, fechadura de porta de sala de aula, semelhante às de celas de prisão; os inspetores ficam com a chave mestra e decidem quem entra no ambiente e quem dele sai. À direita, a quadra da escola evidencia o descaso com o ambiente escolar e com os alunos

Alunos em aula vaga - cena recorrente

Elizane Henrique de Mecena
Artigo relacionado:
FREITAS, M. C.; MECENA, E. H. Vulnerabilidades de crianças que nascem e crescem em periferias metropolitanas: notícias do Brasil. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventude, Manizales (Colômbia): Universidad de Manizales, v. 10, n.1, p. 195-203, jan.-jun. 2012.
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Edição 02 • Junho 2014