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É hora de levar o compliance digital a sério

O mundo pós-pandêmico tem exigido reflexões mais consistentes, não somente sobre o poder da inovação, mas sobre a responsabilidade que sua assimilação implica. As demandas sociais põem em xeque, ainda, como a educação tem um papel central nesse contexto e quais os caminhos que o país pode percorrer para que ainda tenha chances de competir por um lugar na ciência – e no planeta

Diante de tantos projetos oriundos da universidade surgidos durante a pandemia, é importante garantir uma estrutura com estratégia que promova a inovação e a pesquisa, com a intenção de conectar esses campos cuja sinergia não é automática. Isso implica reforçar com o(a) pesquisador(a) que ele(a) tem a possibilidade de construir uma realidade melhor, com vistas ao interesse público, sem abrir mão de suas realizações pessoais. Existe um arcabouço legal, solidamente estruturado (Lei de Inovação, nº 13.243/2016, regulamentada pelo Decreto nº 9.238/2018, com origem na Lei nº 10.973/2004 e na Emenda Constitucional nº 85/2015), que estabelece, de maneira clara e inequívoca, a interconexão entre pesquisa, tecnologia e inovação na universidade ou em qualquer outra instituição de ciência e tecnologia (ICT).

É essencial que qualquer pessoa com pretensão de fazer, analisar, comentar, estudar ou criticar o processo de inovação conheça os instrumentos legais. Em vez de perder tempo, os(as) pesquisadores(as) podem ganhar muito em eficiência, retorno e reconhecimento ao atender corretamente a legislação vigente, dentro e fora da universidade. Ainda mais, podem se defender e contra-atacar os espíritos retrógrados que procuram, por todos os meios, impedir que o(a) pesquisador(a) contribua de maneira efetiva para a sociedade com inovações de interesse público.

Na Unifesp, há a resolução n° 175/2020 e na legislação brasileira existe o Marco Legal da Inovação (Lei nº 13.243/2016). Ambas estabelecem como o(a) docente pode participar de atividades fora da universidade, em particular atividades remuneradas. Em tese, uma deveria conversar com a outra na universidade. Não há conflito de interesse. O que se espera dessas interações são efeitos benéficos à sociedade, como inovação, empregos, solução de problemas, impostos arrecadados e produtos inovadores, além de ganhos à universidade devido à troca de saberes.

Contudo, a resolução possui um tom ameaçador e basta lê-la para identificar um animus não existente no Marco Legal da Inovação. A norma institucional exige um “controle do tempo” dedicado a outras atividades, uma série de restrições e condicionantes que sujeitam os(as) pesquisadores(as) ao status absurdo de suspeitos(as) diante do que apresenta o Marco Legal da Inovação. A norma, evidentemente, na maneira como está estabelecida, desestimula os(as) docentes a se envolver com atividades externas que possam colocá-los(as) em risco; não perante a lei, que não coloca essas restrições, mas diante do tom ameaçador. Basta ler os artigos 13º a 15º e qualquer um(a) desistirá de fazer inovação em colaboração com entes privados na Unifesp. Se uma empresa percebe as dificuldades que enfrenta o(a) pesquisador(a) ao interagir com o setor privado, que emanam dessa regulamentação interna, não vai procurar a universidade para projetos que promovam a inovação, mesmo social, mas outras instituições que tenham normas menos ameaçadoras.

Caminhos abertos ao compliance

O compliance é um conjunto de práticas organizacionais que visa reforçar a transparência da empresa e de suas ações, adotando processos para garantir a conformidade com as leis, normas e políticas de boas práticas. As mudanças que ocorreram nas empresas e instituições públicas não se devem à pandemia. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgados muito antes de 2020, mostram que tudo o que está sendo discutido agora não é novo. Um grande exemplo disso é o próprio item 17, que incentiva a atuação com a sociedade civil e o governo. Isso ocorre, antes de tudo, por meio da conformação dos processos organizacionais ao que a legislação brasileira prega.

É difícil encontrar algo mais concreto visando aplicar esses princípios. Por outro lado, inspiradas nesse documento da ONU, muitas organizações passaram a adotar a tríade ESG (Environmental, Social and Governance) no intuito de assimilar a sustentabilidade, a responsabilidade social e a governança em seus processos. A pandemia intensificou essa preocupação na sociedade, pois a mesma começou a prestar mais atenção às consequências da crise e a relação com os danos às florestas existentes. Bem como a todo o desequilíbrio ambiental que abre espaço ao desenvolvimento de vetores de doenças e a visibilidade que as pessoas em situação vulnerável alcançaram nesse contexto, devido aos impactos enormes que a pandemia trouxe a elas. São pessoas à margem dos mecanismos que poderiam proporcionar uma vida melhor, e isso faz a sociedade refletir sobre sua responsabilidade, afinal essas pessoas não puderam parar de trabalhar sob risco de passar fome.

Os princípios da compliance foram disseminados no mundo todo devido a uma preocupação crescente com os riscos da corrupção para a saúde das empresas. O mundo inteiro ficou estarrecido com a quantidade de dinheiro desviado do Brasil em razão desse contexto. Hoje sabe-se que isso tudo ocorreu em um ambiente de total desobediência às regras de compliance. As empresas que se viram criticadas, em seus países, por participarem desses esquemas, resolveram levar mais a sério essas regras. E ficou mais difícil para as empresas brasileiras que não as adotam negociar com o mundo.

A educação como motor das mudanças

Independente do conteúdo didático apresentado em sala de aula e das dificuldades inerentes ao ensino básico, sempre há espaço para inserir conteúdos, reflexões e debates sobre Filosofia, Economia, Robótica, Programação, Bioeconomia, Sustentabilidade, História, Antropologia, Literatura e outras competências que serão desejáveis nos profissionais do futuro. As dicotomias exatas versus humanas e biológicas versus matemática são todas ilusórias e artifícios que limitam o aprendizado de crianças e adolescentes. É possível instigar esses(as) jovens, por exemplo, a partir do filme Eu, Robô, relacionando sua história com as discussões mais recentes sobre Inteligência Artificial (IA). A história original de Isaac Asimov, que inspirou o filme, não é certamente um clássico da literatura mundial, mas quantas reflexões podem sair desse tema? Com uma ação simples como essa, o(a) estudante passa a considerar os dilemas éticos, como pensar na própria sobrevivência e consciência e nas responsabilidades coletivas. Surgem indagações, como a importância do altruísmo, um valor que, erradamente, muitos veem como tipicamente ocidental e cristão, e de onde vem esse princípio. “É assimilado da religião ou se é cultural?.”

A célula humana é um robô, que tem nanomáquinas funcionando dentro. Nós inventamos a Nanotecnologia? Abra uma célula, disseque e observe as estruturas que a fazem funcionar. As proteínas que estão ali trabalhando são nanomáquinas, que geram energia, montam outras proteínas, copiam um DNA, replicam, comunicam fora da célula, reconhecem a glicose para geração de energia... são nanomáquinas muito sofisticadas! É assim que percebemos que todos esses temas, relacionados, podem ser abordados nas aulas de ciências.

A ciência se desenvolverá sozinha, só porque as pessoas são curiosas, ou há uma forte pressão econômica para que seja pesquisado aquilo que possa ser mais interessante ao Estado ou aos interesses econômicos do momento? Será que as máquinas a vapor e os teares teriam se desenvolvido na Inglaterra, no século XVIII, se um grupo não tivesse vislumbrado naquela inovação um grande potencial de retorno econômico? A Termodinâmica, como ciência, ganhou forma e impulso nesse momento.

Essa competência para ver a ligação dos saberes, porém, precisa de formação e qualificação. O(a) educador(a) precisa ter essa visão mais geral, ser ensinado(a) que o conhecimento pode ser articulado e aplicado a diversas áreas. Isso é o básico para que possam ser formados(as) cidadãos(ãs) capazes de assimilar e desenvolver novos conhecimentos que tornem o país mais preparado para lidar com as mudanças do planeta.

De olho no gap tecnológico

Tivemos avanços absurdos em áreas de genômica, terapias gênicas, anticorpos monoclonais, inteligência artificial, tratamento de big data, astrofísica, computação quântica e vida sintética, mas são conhecimentos acumulados de muitas décadas. São assuntos que precisamos dominar com muita urgência. O gap tecnológico se acentua exponencialmente e deve ser tratado com estratégias nacionais nas quais a universidade, como centro de reflexão e proposição de soluções, tem papel fundamental. Vejamos o caso particular da genômica, em especial o conhecimento acumulado nas décadas de 1980 e 1990, e todos os temas que derivam do Projeto Genoma Humano (PGH), uma pesquisa científica, como todos(as) sabem, finalizada em 2003, que contou com a participação de cientistas de 18 países. Foi um investimento de US$ 3 bilhões que retornou, nas estimativas mais críticas e conservadoras, três vezes o valor às nações envolvidas. Nas avaliações mais realistas, o retorno foi de 60 vezes o montante aplicado. Ciência não é despesa, é investimento. O ambiente tem que estar preparado para transformar conhecimento em inovações. Não é um processo espontâneo; é calculado, dirigido, incentivado, financiado e valorizado; e funciona!

Claro que, após a pandemia, o conhecimento sobre a epidemiologia do coronavírus será muito amplo, pois não havia patógenos, até então, com o mesmo comportamento desse vírus. O que é feito hoje, entretanto, tanto nas ferramentas analíticas, quanto em vacinas, é a consolidação de conhecimento que já havia sido obtido. Há 18 anos já eram estudados vetores virais para tratar o Sars-CoV-1, que surgiu na Ásia em 2003. A vacina não surgiu agora. O uso do adenovírus e da proteína spike já era do conhecimento público, tanto nos centros universitários de pesquisa como na AstraZeneca e em outras empresas farmacêuticas. Era sabido como se montava o material genético do vírus, onde crescia, o que o estabilizava, como cortar o material genético no lugar certo e quais adenovírus podiam ser usados sem risco à saúde humana.

O que o Brasil precisa, agora, é concentrar pessoal que assimile rapidamente esses saberes acumulados e trazê-los ao país. Isso se faz enviando bastante estudantes ao exterior, com bolsa, e dando condições para voltarem com lugar definido para trabalhar. Estimular intensamente as colaborações internacionais é fundamental. O Estado precisa conversar com as universidades e institutos de pesquisa para identificar quais os pontos fortes que necessitam receber investimentos. É preciso levantar dados, identificando os centros formadores, as tecnologias já desenvolvidas, os(as) parceiros(as) desses centros de pesquisa ou empresas e fornecer recursos continuamente.

Hoje formam-se milhares de doutores(as) ao ano e essas mentes especializadas são muito pouco aproveitadas. Grande parte vai para fora do país fazer um pós-doutorado e acaba sendo convidado(a) a permanecer nos centros de pesquisa e empresas lá de fora – Alemanha, Estados Unidos, França, Israel etc. É investido um período de 10 anos para formar especialistas que são aproveitados(as) fora do país.

É preciso, para dar um, entre dezenas de exemplos, estímulo para trazer pessoal especializado que conheça profundamente tecnologias como o CRISPR, tecnologia que permite modificações genéticas nas células e será usada intensamente para curar doenças nos próximos anos. Em pouquíssimos anos esse desenvolvimento de ciência básica, com aplicações potenciais extraordinárias e inimagináveis há 15 anos, para o bem ou para o mal, tornou-se uma ferramenta aplicada de efeitos além de qualquer previsão otimista. Isso não acontece em um ambiente repressor, nem onde a interação dos(as) pesquisadores(as) com o sistema de inovação é mutilada por regras despropositadas, lentidão burocrática paralisante, nem por mentes tacanhas cujos julgamentos acreditam ser supremos, definitivos; e que, nada verdade, são, na melhor das hipóteses, retrógrados e autoritários.

David Hsu, da University of Pennsylvania, grande estudioso da Economia de Conhecimento, afirma textualmente que “nos últimos 40-50 anos, a pesquisa básica em laboratórios corporativos de P&D teve um declínio acentuado, enquanto a pesquisa acadêmica em universidades cresceu. Não estamos mais na era da pesquisa básica da AT&T/ Bell Labs, GE Labs, Kodak e DuPont - tudo isso faz parte do passado, da história dos negócios”, disse Hsu. “Por outro lado, a moderna universidade de pesquisa dos EUA tende a estar cada vez mais interessada em traduzir a pesquisa acadêmica em algo que tenha impacto social, com considerações de desenvolvimento econômico associadas. É uma grande mudança”, continuou.

Hsu apontou alguns dos motivos que impulsionaram a mudança nas inovações e descobertas baseadas em pesquisa, dos laboratórios corporativos de P&D para as universidades. “Uma delas é o reconhecimento pelas universidades de que sua contribuição para a sociedade pode vir de muitas fontes além das tradicionais de origem da pesquisa básica e de suas funções de ensino e formação. Cada vez mais, as universidades de pesquisa também estão interessadas em demonstrar como parte dessa pesquisa pode ser usada de forma produtiva pela sociedade por meio de um enfoque translacional”, afirmou o pesquisador.

 

*Jair Ribeiro Chagas

Graduado em Farmácia e Bioquímica pela Universidade de São Paulo (USP), mestrado e doutorado em Ciências Biológicas (Biologia Molecular) pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pós-doutorado em Bioquímica e Enzimologia de Proteases na Universidade François Rabelais, Tours, França. Trabalhou por oito anos na Hoechst do Brasil Química e Farmacêutica (atual Aventis) na área de novos medicamentos, retornando à Unifesp em 1988. Ingressou como professor adjunto no Departamento de Biofísica da Unifesp em 1993. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), de 1999 a 2006, em licença sem vencimento da Unifesp, no período de 1999 a 2004. Participou da criação dos programas de pós-graduação, mestrado e doutorado, em Biotecnologia e Engenharia Biomédica da UMC. Retornou à Unifesp em dedicação exclusiva desde 2006 onde foi professor associado do Departamento de Biociências e orientador dos programas de pós-graduação em Psicobiologia e Biologia Molecular. Atualmente aposentado, foi diretor do Núcleo de Inovação Tecnológica - NIT/Unifesp de 2015 a 2017, diretor de pesquisa da Fundação de Apoio à Unifesp (FapUnifesp) em 2018, da qual é o atual diretor-presidente. Tem experiência em Bioquímica de Proteases e Síntese e Atividade de Peptídeos Biologicamente Ativos, Biologia Molecular, Proteases Celulares, com projetos nas áreas de Calicreínas, Serpinas, Cisteíno Proteases, Enzima Conversora de Angiotensina 1, Atividades proteolíticas em modelos de Privação de Sono, Adição a Drogas e Hipóxia. Atua também nas áreas de Gestão da inovação, Proteção Intelectual e Transferência Tecnológica. Foi fundador e sócio das empresas Med-Discovery, Dermadis, Exa-m and Sepia P&D (Fonte: Currículo Lattes)

Jair Ribeiro Chagas

(Fotografia: Alex Reipert)

  

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HSU, David H. Should Universities Try to Capture More Value from Their Research? University of Pennsylvania, Filadélfia, 25 jan. 2021. Disponível em: <https://knowledge.wharton.upenn.edu/article/universities-try-capture-value-research/>. Acesso em: 21 maio 2021.