Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), refugiados(as) são pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados. João Amorim, professor do curso de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco, explica que “essas pessoas se sentem ameaçadas por uma condição objetiva e concreta do seu local de origem. Por isso, falamos em fundado temor pela vida. Elas realizam uma fuga forçada e não têm tempo nem para pegar seus documentos”.
Refugiados(as) são pessoas que realizam um deslocamento forçado do seu local de origem
A criação da figura jurídica de refugiado(a) data do início do século XX, o que obrigou os Estados a protegerem essas pessoas. “Até então, refugiados(as) eram tratados(as) como estrangeiros(as) e não possuíam direitos. A partir das primeiras definições jurídicas e com a criação de normas específicas, os Estados passam a ter a obrigação de garantir direitos e condições a esses grupos para que possam recomeçar suas vidas e voltar a se sentir seguros”, explica Amorim. Para o professor, o Brasil vem se abrindo para receber essas pessoas. “Em 1997, é criada a Lei nº 9.474/97, que regula o refúgio no Brasil. Ela define os direitos e deveres dos(as) refugiados(as), e como se reconhece a condição de refugiado(a) no país. Essa lei reproduz as disposições da convenção da ONU de 1951, que é um tratado internacional que define os direitos dos(as) refugiados(as) e as responsabilidades dos países que os(as) acolhem.”
Até o final de 2023, mais de 117 milhões de pessoas permaneceram deslocadas à força, segundo dados divulgados pelo ACNUR. Isso significa que uma em cada 69 pessoas globalmente, ou 1,5% de toda a população mundial, estava deslocada à força. Esse número representou um aumento de 8% em relação ao ano anterior, continuando uma tendência de aumentos anuais há 12 anos. Se todas essas pessoas vivessem atualmente em um mesmo território, elas formariam o 12º país mais populoso do mundo. Com base em dados operacionais, o ACNUR estima que, até o fim de abril de 2024, é provável que o número tenha ultrapassado 120 milhões, o que é mais do que o dobro do que havia há dez anos. Cerca de 73% dos(as) refugiados(as) sob o mandato do ACNUR são originários de apenas cinco países: Afeganistão, Síria, Venezuela, Ucrânia e Sudão.
Até o final de 2023, mais de 117 milhões de pessoas permaneceram deslocadas à força, segundo o ACNUR
Segundo Amorim, o número de refugiados(as) no mundo nunca parou de crescer desde a II Guerra Mundial. “Só no último ano, tivemos 22 conflitos armados ao redor do globo. Além disso, temos as oscilações e polarizações políticas, cada vez mais fortes. Isso tudo faz com que a tendência seja de crescimento dessa população nos próximos anos”. O professor explica que, apesar de conflitos sempre terem existido, a diferença é que hoje eles são visibilizados. “Diversos tipos de conflitos por identitarismo e lutas por direitos de minorias eram invisibilizados ou sufocados no passado, porém sempre existiram. O que é atual é a visibilidade dos problemas, os dados que temos hoje. O mundo nunca teve tantas crises humanitárias, a mobilidade humana nunca foi tão facilitada, as máfias do tráfico de pessoas nunca tiveram tanta facilidade para lavar dinheiro e se comunicar. Esse negócio nunca foi tão lucrativo. É o terceiro tipo de crime organizado mais lucrativo, só perde para o tráfico de armas e de órgãos. Nunca teve tantos refugiados(as) porque ninguém nunca olhou para isso. A humanidade não para de colocar em curso genocídios, crises humanitárias. Veja Gaza, Líbano, Cisjordânia e Ucrânia! Continua a mesma lógica do imperialismo, as pessoas vão sendo forçadas a se deslocar de seus países de origem".
Amorim alerta sobre a apropriação da figura do(a) refugiado(a) em políticas e discursos populistas. “Com o ressurgimento de partidos de extrema direita em todo o mundo, vemos a continuidade do uso da figura do(a) migrante, principalmente do(a) refugiado(a), em políticas e discursos populistas, que tem como foco o combate ou eliminação da imigração, alimentando o imaginário popular". O professor também remete à origem da palavra estrangeiro, que significa alguém que não pertence a determinado local, que não é um(a) dos(a) nossos(as). “Como essa pessoa não tem visibilidade na sociedade, vive marginalizada, é fácil culpá-la por todas as mazelas, inclusive pela falsa ideia de que essas pessoas irão ‘roubar’ os empregos das demais. Em nenhum país do mundo, os(as) migrantes se inserem na cadeia produtiva do país por cargos médios ou superiores. São sempre por cargos que a maioria não quer pegar, como faxineiros(as), padeiros(as), pedreiros(as). Muitas dessas pessoas são extremamente qualificadas, mas esbarram nas burocracias e dificuldades de reconhecimento de diplomas obtidos em seu país". Nesse sentido, o professor avalia que as cátedras têm ajudado muito e as universidades estão se abrindo mais. Como um dos pontos positivos, ele também cita a criação da Plataforma Carolina Bori, um sistema informatizado criado pelo Ministério da Educação (MEC) para gestão e controle de processos de revalidação e reconhecimento de diplomas estrangeiros no Brasil.
“Como essa pessoa não tem visibilidade na sociedade, vive marginalizada, é fácil culpá-la por todas as mazelas"
João Amorim, professor da Unifesp
Ao fugirem para outro país, essas pessoas correm diversos riscos, especialmente mulheres e meninas, como escravização, assassinato e violência sexual. “Muitas pessoas não entendem por que essas pessoas se submetem a tantos riscos, mas é preciso compreender que elas estão desesperadas; se ficarem em seu país, correm risco de vida. Devido ao desespero, acabam se tornando vulneráveis a todo tipo de violência para tentar escapar daquela realidade”, afirma Amorim. Quando chegam a um novo país, passam a enfrentar dificuldades e também a lidar com o preconceito da sociedade. Para Amorim, os desafios que os(as) refugiados(as) enfrentam ao chegarem ao Brasil são os mesmos da população que vive abaixo da linha da pobreza. “Negação de serviços de saúde, educação, desconhecimento sobre benefícios sociais, desinformação, barreiras na legislação, racismo, machismo, xenofobia. E, no caso dos(as) refugiados(as), ainda há a barreira do idioma”, cita o professor. Amorim ressalta que as sociedades tendem a discriminar um tipo específico de pessoa. “Em vez de xenofobia, prefiro adotar o termo aporofobia, criado pela filósofa espanhola Adela Cortina nos anos 1990, que se refere ao preconceito e à aversão às pessoas pobres. Isso significa que o preconceito é contra o(a) estrangeiro(a) pobre e vulnerável, não contra aquele(a) que tem dinheiro, vide a proposta do presidente Donald Trump, chamada de Gold Card, que prevê a permissão de residência permanente nos Estados Unidos mediante o pagamento de 5 milhões de dólares.”
Para o professor, o acolhimento dos(as) refugiados(as) na sociedade não é só uma responsabilidade do Estado. “Trata-se de uma responsabilidade da sociedade civil como um todo. Temos dois campos de atuação: um vertical, representado pelo Estado, que precisa respeitar os direitos humanos e as políticas públicas para todos(as); e outro horizontal, que deve ser liderado pela própria sociedade, por meio de organizações da sociedade civil e universidades, por exemplo, fazendo a sua parte para a garantia dos direitos humanos".
Refugiado(a) é imigrante? Essa condição difere da encontrada por um(a) imigrante, porque o(a) refugiado(a) não pode retornar ao seu país de origem sob risco de sua própria vida. Já um(a) imigrante pode buscar melhores oportunidades econômicas em outra nação e retornar ao seu país quando quiser.
Refugiados(as) ambientais: a falta de reconhecimento jurídico de uma categoria
Outro fator que tem ajudado a aumentar o número de deslocados(as) no mundo envolve eventos climáticos extremos. Dados recentes revelam que 4,3 milhões de refugiados(as), 580.100 solicitantes de asilo e 50,6 milhões de deslocados(as) internos(as) estão em países expostos a altos, severos ou extremos níveis de riscos relacionados ao clima, enquanto também enfrentam conflitos. No final de 2023, cerca de um(a) em cada dez refugiados(as) e solicitantes de asilo, e quase três em cada quatro deslocados(as) internos(as) viviam em áreas expostas a riscos climáticos extremos. Estima-se que, sem soluções e medidas eficazes de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, quase 12 milhões de refugiados(as) e solicitantes de asilo (12 vezes mais do que em 2023) e 37 milhões de pessoas deslocadas em seus próprios países (87 vezes mais do que em 2023) viverão em tais condições até 2040.
Eventos climáticos, como terremotos, têm ajudado a aumentar o número de deslocados(as) no mundo
Jhonatan Santos pesquisou, em seu trabalho de conclusão do curso de Ciências Sociais na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) - Campus Guarulhos, sob a orientação de José Lindomar Albuquerque, a forma como a mídia brasileira representou a imigração haitiana após o terremoto no país em 2010, considerando o contexto de deslocamentos humanos por questões ambientais e o não reconhecimento jurídico da categoria de refugiado ambiental. Como metodologia, foi utilizada a Análise Crítica do Discurso (ACD), a fim de investigar as práticas sociais por meio do discurso, destacando questões como abuso de poder, controle e desigualdades sociais. A análise foi aplicada a reportagens dos jornais O Estado de São Paulo, O Globo e Folha de São Paulo, publicadas entre 2010 e 2017.
O pesquisador explica que a categoria de refugiado(a) ambiental não é reconhecida juridicamente pela Convenção de Genebra de 1951, que define refugiados(as) como aqueles(as) que fogem de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. “O termo é relativamente novo e está diretamente relacionado ao aumento da frequência e intensidade de desastres naturais e mudanças climáticas nas últimas décadas. Apesar de ser amplamente discutido em contextos acadêmicos e humanitários, ele ainda não foi incorporado ao direito internacional”, esclarece. Para Santos, no caso do Haiti, o terremoto de 2010 foi um exemplo de como desastres naturais podem forçar grandes deslocamentos populacionais. “Apesar de não serem oficialmente reconhecidos(as) como refugiados(as) ambientais, os(as) haitianos(as) que migraram para o Brasil após o terremoto exemplificam a necessidade de uma categoria jurídica que proteja essas pessoas”, defende.
"O termo está diretamente relacionado ao aumento da frequência e intensidade de desastres naturais e mudanças climáticas nas últimas décadas"
Jhonatan Santos, pesquisador
Embora não haja um número exato de refugiados(as) ambientais no mundo, já que a categoria não é oficialmente reconhecida no Direito Internacional, há dados sobre pessoas deslocadas internamente devido a desastres naturais e mudanças climáticas. Com base no IDMC Global Report on Internal Displacement 2024, em 2023, houve 26,4 milhões de deslocamentos internos registrados em 148 países devido a desastres naturais, como inundações, tempestades, terremotos e secas. Já no final de 2023, 7,7 milhões de pessoas ainda estavam vivendo em deslocamento interno como resultado de desastres. Segundo o Banco Mundial (2018), estima-se que até 2050 haverá cerca de 140 milhões de pessoas deslocadas devido a eventos climáticos extremos, como secas, enchentes e elevação do nível do mar. “Esse número tende a aumentar à medida que os efeitos das mudanças climáticas se intensificam, especialmente em regiões mais vulneráveis, como países pobres e insulares”, explica Santos.
Sobre o terremoto de 2010 no Haiti, que vitimou cerca de 230 mil pessoas e deixou mais de um milhão de desabrigados(as), Santos pontua que muitos(as) haitianos(as) escolheram o Brasil para migrar em busca de melhores condições de vida. “No entanto, como o terremoto não se enquadrava nas causas tradicionais de refúgio, os(as) haitianos(as) não puderam ser reconhecidos(as) como refugiados(as). O Brasil, então, criou o visto humanitário em 2012 para regularizar a situação desses(as) migrantes, permitindo que eles(as) entrassem e permanecessem legalmente no país”, sinaliza.
Para Santos, a escolha do tema da pesquisa foi motivada pela relevância humanitária da imigração haitiana para o Brasil após o terremoto de 2010. Além disso, o tema se destacou pela falta de reconhecimento jurídico da categoria de refugiado(a) ambiental, gerando certas deficiências na proteção legal desses(as) migrantes(as). “A pesquisa também buscou preencher uma lacuna nos estudos acadêmicos, que tendem a focar mais em aspectos jurídicos e políticos das ondas migratórias, deixando de lado as representações midiáticas e sociais. Dessa forma, avaliar como a mídia jornalística valida ou não a categoria de refugiados(as) ambientais foi importante para compreender como essas representações influenciam a percepção pública e as políticas migratórias”, destacou.
Quanto aos principais resultados da pesquisa, Santos destaca três: a) construção de estereótipos: a mídia brasileira frequentemente retratou os(as) haitianos(as) como ilegais, clandestinos ou invasores, reforçando uma narrativa que os associava à criminalidade e ao descontrole; b) oscilação terminológica: a mídia oscilou entre os termos imigrante e refugiado(a) ambiental, refletindo a falta de reconhecimento jurídico da categoria de refugiado(a) ambiental; e c) visto humanitário como solução emergencial: o visto humanitário foi uma solução provisória para regularizar a situação dos(as) haitianos(as) no Brasil, mas também evidenciou as limitações e contradições das políticas migratórias brasileiras.
Os deslocamentos humanos associados a questões ambientais também foi tema da pesquisa de mestrado de Luiz de Barros Moreira, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) - Campus Guarulhos, sob a orientação de José Lindomar Albuquerque e Humberto Alves. Dentre os objetivos principais, estava a caracterização das categorias de refugiados(as), imigrantes e deslocamentos humanos associados a questões ambientais.
Como motivações para a escolha do tema, Moreira conta que, na licenciatura em Ciências Sociais, fez um estágio na Casa do Migrante, um abrigo da Missão Paz que permite a permanência de apátridas, imigrantes, solicitantes de refúgio e refugiados(as), em um momento em que muitos(as) haitianos(as) estavam vindo para o Brasil após o terremoto de 2010. Além disso, também teve a oportunidade de conhecer um abrigo feito para migrantes no Acre, uma das rotas utilizadas para entrar no Brasil.
Luiz afirma que o ACNUR não reconhece a caracterização de refugiados(as) ambientais, mas sim a de deslocados(as) ambientais, os(as) quais, uma vez que não tenham saído de seu país, são objeto de tratativas específicas, como as adotadas pelas Defesas Civis no Brasil. “Isso significa que, em âmbito regional, isto é, quando falamos de desastres ambientais ocorridos no Brasil, por exemplo, temos um robusto sistema de monitoramento e protocolo, sendo a Defesa Civil a responsável. Já em nível internacional, quando ocorre um deslocamento humano associado a questões ambientais entre dois países distintos, o que tem ocorrido são soluções regionais, em que os países envolvidos resolvem a questão entre si, não havendo um ordenamento internacional dando diretrizes gerais”, explica Moreira.
Sobre as contribuições da pesquisa, Luiz afirma que o trabalho possibilitou a análise de uma dimensão mais ampla dos debates que ocorrem a nível internacional, com destaque a países da Oceania, que já vêm enfrentando problemas com o aumento do nível do mar em países insulares. “Além disso, a pesquisa reforça a importância do rigor dos conceitos na abordagem do tema, algo fundamental para a constituição de um debate consubstanciado sobre essa temática”, finaliza.
A realidade dos(as) refugiados(as) no Brasil
O governo brasileiro reconheceu 77.193 pessoas como refugiadas em 2023, o maior quantitativo verificado ao longo de toda a história do sistema de refúgio nacional. Ao todo, 143.033 pessoas já são reconhecidas pelo Brasil como refugiadas.
O Brasil reconheceu mais de 77 mil pessoas como refugiadas em 2023, o maior quantitativo de toda a história do sistema de refúgio nacional
Em 2023, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) deliberou sobre 138.359 solicitações de reconhecimento de refúgio, um aumento de 235% em relação a 2022. As principais nacionalidades solicitantes em 2023 foram venezuelanas (50,3%), cubanas (19,6%) e angolanas (6,7%). Os homens corresponderam a 51,7% desse total e as mulheres, a 47,6%. Além disso, 44,3% das pessoas reconhecidas como refugiadas eram crianças, adolescentes e jovens com até 18 anos de idade.
Do total, 72% das solicitações apreciadas pelo Conare foram registradas nas Unidades da Federação (UFs) que compõem a região norte do Brasil. O estado de Roraima concentrou o maior volume de solicitações de refúgio (51,5%), seguido por Amazonas (14,2%) e São Paulo (7,5%).
Amorim pontua que o sistema de concessão de refúgio brasileiro é considerado referência em todo o mundo. “O Brasil tirou das mãos dos órgãos de segurança a decisão final sobre a concessão de refúgio e criou um órgão específico dentro do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Desde o momento em que a pessoa solicita refúgio, o Brasil já reconhece direitos básicos, como o direito à moradia, educação e saúde. Por isso tudo, a estrutura normativa brasileira sobre migração é exemplo, mas é preciso fazer com que essa informação chegue ao(à) migrante e dar condições para que ele(a) possa ter acesso a esses direitos. Portanto, é importante frisar que não é culpa da legislação; é culpa de uma condição sistêmica, estrutural da sociedade brasileira, que ainda é muito preconceituosa, machista, racista. E a sociedade tem o poder de mudar por ela própria. A transformação começa por aí.”
Entenda as diferenças:
Deslocados(as) internos(as): são pessoas deslocadas dentro de seu próprio país, pelos mesmos motivos de um(a) refugiado(a), mas que não atravessaram uma fronteira internacional para buscar proteção.
Apátridas: são pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país. A apatridia ocorre por várias razões, como discriminação contra minorias na legislação nacional, falha em reconhecer todos(as) os(as) residentes do país como cidadãos(ãs) quando este país se torna independente e conflitos de leis entre países.
Retornados(as): são pessoas que tiveram o status de refugiados(as) e solicitantes de refúgio, e que retornam voluntariamente a seus países de origem. Para muitos(as) dos(as) que foram forçados(as) a fugir, voltar para casa significa o fim de um tempo muitas vezes traumático no exílio.
Solicitantes de asilo: são pessoas que solicitam às autoridades competentes serem reconhecidas como refugiadas, mas que ainda não tiveram seus pedidos avaliados definitivamente pelos sistemas nacionais de proteção e refúgio.
Portadores(as) de visto humanitário: pessoas que recebem um visto temporário para se deslocar a um país devido a crises humanitárias em seus países de origem. Situações que podem dar direito a um visto humanitário envolvem guerras, catástrofes naturais e perseguições políticas.
*Informações obtidas no site do ACNUR
Ingresso na graduação: oportunidade de qualificação
Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) é realizado, desde 2019, um processo seletivo específico para ingresso de refugiados(as), apátridas e portadores(as) de visto humanitário. No último edital, divulgado no 2º semestre de 2024, foram ofertadas 52 vagas em diversos cursos de graduação da universidade. O processo seletivo é gratuito, sem cobrança de taxa de inscrição. A seleção é composta por uma prova objetiva e uma prova de redação. Em 2024, o primeiro estudante que ingressou por meio de processo seletivo específico concluiu seu curso na Unifesp, e a previsão é de que mais dois/duas concluam a graduação no final de fevereiro de 2025 e de que mais cinco concluam até o final deste ano.
A Unifesp realiza um processo seletivo específico para ingresso de refugiados(as), apátridas e portadores(as) de visto humanitário
Com o ingresso desses(as) estudantes por meio deste processo seletivo específico e do Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G), a Unifesp tem hoje quase 100 estudantes internacionais em cursos de graduação. “Esse fato permite afirmar que somos uma instituição internacionalizada e que isso tem se dado por meio das políticas afirmativas. Além disso, para muitos(as) estudantes brasileiros(as), o trabalho na universidade tem oportunizado uma espécie de intercâmbio cultural no próprio país”, destaca o coordenador de Apoio Educacional, Acessibilidade e Inclusão da Unifesp, Carlos Dias.
Dias afirma que “o processo seletivo é importante não apenas por garantir vagas específicas, mas também por ser pensado para uma pessoa que não cursou o ensino médio no Brasil e que, portanto, não está em condições parelhas de competir por meio do Sisu ou Vestibular Misto. Além disso, eles(as) concorrem apenas entre si, ou seja, na prática, isso eleva a concorrência internacional”.
A diretora da Secretaria de Relações Internacionais (SRI/Unifesp), Karen Spadari Ferreira, explica que, quando estes(as) estudantes chegam para estudar na graduação, eles(as) têm acesso ao programa de português para refugiados(as), apátridas e portadores(as) de visto humanitário para permitir que, independente do idioma de origem, eles(as) consigam aprender minimamente o português, para que acompanhem os cursos escolhidos. “Nós temos o Centro de Línguas no Campus Guarulhos, ainda piloto, que está em vias de ser institucionalizado e que, por conta da nossa política institucional de internacionalização do acolhimento aos(às) estrangeiros(as) e, principalmente aos(às) refugiados(as), apátridas e portadores(as) de visto humanitário, nós decidimos junto aos(às) professores(as) do curso de Letras, em parceria com a Pró-Reitoria de Graduação (ProGrad), ofertar cursos específicos de letramento em português acadêmico para estes(as) alunos(as). Ainda, faz parte do curso, como parte da carga horária, atividades de imersão, com atividades voltadas à cultura brasileira, como visitas ao Museu da Língua Portuguesa”, explica Ferreira.
O curso de extensão Letramento Acadêmico-Português Língua Estrangeira, da Unifesp, está sendo ministrado pela primeira vez em 2025. O curso é ofertado na modalidade híbrida a fim de atender alunos(as) de todos os campi. As aulas são on-line, com atividades presenciais aos sábados. São garantidas vagas para todos(as) os(as) ingressantes, além de serem ofertadas vagas para o público externo.
Além do processo seletivo específico, a Unifesp também recebe demandas de parceiros(as) e associações dos quais faz parte, como o Grupo de Cooperação Internacional de Universidades Brasileiras (GCUB).
Assistência a estudantes internacionais
Em 2025, haverá o ingresso de 17 estudantes internacionais na Unifesp, sendo onze pelo processo seletivo para refugiados(as), apátridas e portadores(as) de visto humanitário e seis pelo Programa de Estudantes - Convênio de Graduação (PEC-G).
Uma vez matriculados(as) em cursos de graduação da Unifesp, todos(as) os(as) estudantes estrangeiros(as), ou não, têm acesso à alimentação subsidiada, podendo almoçar e/ou jantar por um custo de R$ 2,50 para cada refeição. Além disso, uma vez matriculados(as), podem usar o Serviço de Saúde do Corpo Discente (SSCD), bem como acessar os Núcleos de Apoio Estudantil (NAE), que contam com psicólogos(as), pedagogos(as), enfermeiros(as), assistentes sociais, entre outros(as) profissionais que prestam apoio acadêmico.
Dentre os auxílios ofertados pela Unifesp a estudantes estrangeiros ou não, está o acesso à alimentação subsidiada
Atualmente, a Unifesp atende 27 estudantes refugiados(as) com o Programa Auxílio para Estudantes (Pape), sendo que 16 recebem o valor máximo. O Pape foi reajustado recentemente em 20%, e o edital para 2025 já está publicado. Além disso, estudantes que ingressam por meio do PEC-G podem se inscrever no Projeto Milton Santos de Acesso ao Ensino Superior (Promisaes), fazendo jus a um auxílio de R$ 622 mensais, que, em casos de vulnerabilidade socioeconômica, podem ser complementados, totalizando o valor máximo do Pape. Soma-se a esses auxílios o auxílio-creche, destinado a estudantes de graduação inscritos(as) no Pape com filhos menores de 6 anos.
Primeiro ambulatório do SUS para refugiados(as)
Em setembro de 2024, o Instituto de Assistência Humanitária do Brasil, em colaboração técnico-científica com o Hospital São Paulo (HSP/HU Unifesp), inaugurou o primeiro ambulatório médico e odontológico destinado à saúde dos(as) refugiados(as). O local disponibiliza consultas, exames e cirurgias de forma gratuita, por meio de profissionais voluntários(as) e do Sistema Único de Saúde (SUS), a pessoas refugiadas no Brasil, atendendo especificamente essa população.
Ambulatório disponibiliza consultas, exames e cirurgias de forma gratuita a refugiados(as) no Brasil
Desde sua inauguração, o local já atendeu pacientes refugiados(as) de 21 países. A unidade conta com o apoio de 40 médicos(as) voluntários(as), dentistas e psicólogos(as), além dos departamentos clínicos da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo. Também há o apoio de tradutores(as) voluntários(as), que auxiliam nos atendimentos em inglês, árabe, espanhol e ferse.
O Ambulatório de Refugiados(as) fica na Rua Botucatu, 612, Vila Clementino, São Paulo - SP. O atendimento é de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h. Os agendamentos podem ser feitos pelos telefones (11) 93038-0101 e (11) 97153-9986 ou pelo e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
Projeto integra refugiados(as) com aulas de português e cultura brasileira
O Memorial Digital do Refugiado (MemoRef) é um projeto idealizado por estudantes do curso de Letras da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) - Campus Guarulhos. Criado em 2015, busca promover a aproximação da comunidade acadêmica com os(as) refugiados(as), combater preconceitos sobre refúgio e migrações, compreender o contexto mais amplo da experiência dos(as) refugiados(as) e promover reflexões sobre a situação de refúgio. A iniciativa oferece aulas de português e cultura brasileira, além de atividades multiculturais.
Projeto oferece aulas de português e cultura brasileira, além de atividades multiculturais
O MemoRef é composto por três eixos principais: aulas de língua portuguesa, a partir das experiências e vivências dos(as) próprios(as) alunos(as); atividades culturais promovidas por alunos(as) e professores(as) da Unifesp e também pelos(as) refugiados(as), com o intuito de integrar o grupo e a comunidade acadêmica; e o acervo digital, formado pelas contribuições e relatos voluntários de cada um(a).
Encontro de Estudantes Internacionais: aproximação e trocas culturais
Como parte das comemorações dos seus 30 anos, a Unifesp promoveu o I Encontro de Estudantes Internacionais, reunindo cerca de 80 estudantes de 19 países, que estudam em 21 cursos de graduação. A série de eventos, realizada em três momentos distintos, proporcionou oportunidades de troca cultural, reflexão sobre as dificuldades enfrentadas de adaptação e uma maior aproximação da universidade com sua comunidade internacional.
O I Encontro de Estudantes Internacionais reuniu cerca de 80 estudantes de 19 países, que estudam em 21 cursos de graduação
O primeiro evento ocorreu em outubro de 2024, com um encontro on-line que contou com a presença de estudantes de graduação da Unifesp que ingressaram por meio do Processo Seletivo para Refugiados(as), Apátridas e Portadores(as) de Visto Humanitário, bem como pelo Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G), assim como de egressos(as), que hoje atuam profissionalmente no Brasil.
O segundo momento aconteceu durante a Semana da Consciência Negra, com cafés temáticos realizados nos campi Guarulhos, São Paulo e Osasco. Nessas conversas, estudantes internacionais puderam relatar suas experiências na universidade e no Brasil.
Encerrando a programação, em dezembro de 2024, foi realizada uma visita guiada ao Museu Afro-Brasil Emanoel Araújo, no Parque do Ibirapuera, e um piquenique, celebrando a diversidade cultural que marca a presença dos(as) estudantes internacionais na Unifesp. “O encontro foi uma oportunidade para a instituição conhecer mais sobre seus(as) estudantes, compreender as dificuldades de adaptação pelas quais muitos(as) têm passado, especialmente na relação professor(a)-aluno(a) na sala de aula, e também de aprender com a diversidade cultural e epistemológica”, destaca Carlos Dias, coordenador de Apoio Educacional, Acessibilidade e Inclusão da Unifesp.
O Encontro proporcionou trocas culturais, reflexão sobre dificuldades enfrentadas e uma maior aproximação da universidade com sua comunidade internacional
Dias explica que a Unifesp tem adotado a expressão “estudantes internacionais”, porque engloba refugiados(as), apátridas, portadores(as) de visto humanitário e estudantes vindos(as) de outros convênios. “Além disso, a expressão international students é usada mundo afora para tratar de imigrantes. Assim, adotamos uma nomenclatura internacional. A adoção do termo também busca superar estigmas, porque, infelizmente, na nossa sociedade e na comunidade acadêmica, o status de refugiado(a) leva a casos de discriminação, enquanto que a ideia de internacional leva a uma valorização dessas diferentes trajetórias e experiências”, pontua.
Cátedra Sérgio Vieira de Melo: acolhimento e apoio a refugiados(as)
Desde 2003, o ACNUR implementa a Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) em cooperação com centros universitários nacionais, dentre eles a Unifesp. Atualmente, a CSVM é composta por 43 instituições de ensino superior, presentes em 13 estados e no Distrito Federal. Ao longo dos anos, a cátedra tem buscado garantir que pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio tenham acesso a direitos e serviços no Brasil, oferecendo apoio ao processo de integração local. A iniciativa brasileira deu tão certo que o ACNUR resolveu expandir para outros países, adotando o modelo brasileiro. Atualmente, a cátedra está presente em 56 instituições acadêmicas localizadas em nove países.
Criada em 2014 na Unifesp, a CSVM tem como objetivo difundir o Direito Internacional dos(as) refugiados(as) e estimular a formação acadêmica e a capacitação de professores(as) e estudantes nesse tema. A cátedra tem desenvolvido ações de acolhimento e capacitação, de modo a auxiliar na integração dos(as) refugiados(as) e solicitantes de refúgio à realidade sociocultural brasileira. Realiza atendimentos de saúde, cursos de português para refugiados(as), ações de divulgação e de formação de uma cultura acadêmica de acolhimento e esclarecimento em relação à temática do refúgio, dentro dos três pilares do ambiente universitário (ensino, pesquisa e extensão).
A cátedra desenvolve ações de acolhimento e capacitação, de modo a auxiliar na integração dos(as) refugiados(as) e solicitantes de refúgio
Segundo o coordenador da CSVM na Unifesp, João Amorim, “a iniciativa visa não apenas inserir a temática do refúgio e da apatridia transversalmente nos mais diversos setores universitários, mas, também — e principalmente — estender as mais diversas atividades de ensino, extensão e serviços públicos da instituição à população de refugiados(as), apátridas e solicitantes de refúgio”.
Desde 2013, a temática do refúgio está inserida nas unidades curriculares obrigatórias Direito Internacional e Sistemas de Direito Internacional, do curso de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco, bem como figura como linha de pesquisa específica do curso. Em 2014, ocorreu a primeira edição da unidade curricular eletiva Direito Internacional dos(as) Refugiados(as), ofertada pelo curso de Relações Internacionais, e aberta à matrícula de estudantes de qualquer um dos campi da Unifesp. Este curso foi estruturado com conteúdo programático e estratégias didático-pedagógicas idênticas às sugeridas pelo ACNUR, bem como adicionados temas contemporâneos relacionados aos novos desafios referentes à proteção e à inclusão social desse grupo.
Na Unifesp, a CSVM contempla ações em diferentes eixos, dentre as quais se destacam:
— incentivo à produção acadêmica sobre a temática do refúgio;
— realização de pesquisas, estudos e análises de conjuntura, tanto em nível de graduação quanto em nível de pós-graduação lato e stricto sensu;
— aulas de português para os(as) refugiados(as) e solicitantes de refúgio;
— abertura de vagas para refugiados(as) em cursos de graduação da Unifesp;
— capacitação de professores(as), servidores(as) e alunos(as) na temática do refúgio, por meio de seminários, cursos, aulas de graduação, pós-graduação, especialização e atividades de extensão;
— realização de seminários com participação de especialistas no tema, tanto dos quadros do ACNUR quanto de entidades governamentais ou da sociedade civil;
— estabelecimento de procedimento de revalidação de diplomas para refugiados(as) e solicitantes de refúgio.
Saúde mental e imigração pela perspectiva intercultural
O curso de especialização em Saúde Mental, Imigração e Interculturalidade da Unifesp foi o primeiro curso oferecido nesta temática e em formato interdisciplinar no Brasil. Inicialmente, em 2017, o curso foi oferecido na modalidade de extensão de curta duração. Dada a grande procura e êxito do curso, foi oferecido, em 2018, no formato de aperfeiçoamento. Nessa modalidade, foi realizada a supervisão do trabalho prático realizado pelo(a) profissional. “A supervisão é um espaço de acolhimento para o(a) profissional no que se refere à sua atuação prática, propiciando um espaço de reflexão de casos que geraram conflitos, ansiedades ou questionamentos. Os encontros permitem um maior desenvolvimento de olhar e postura interculturais no que tange ao trabalho com imigrantes/refugiados(as)”, explica a professora da Unifesp e coordenadora do curso, Sylvia Dantas.
Em 2019, o curso foi oferecido na modalidade de especialização pela Unifesp por meio do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB), ampliando os grupos de supervisão. Para Dantas, “os deslocamentos e seus contatos interculturais apresentam desafios subjetivos profundos tanto para quem imigra como para as sociedades que recebem os novos grupos. A imigração e o refúgio demandam mudanças institucionais para as quais o país precisa se preparar. No Brasil, ao lado de iniciativas exitosas de acolhimento, presenciamos situações de discriminação, xenofobia e patologização por parte de uma sociedade comumente vista no passado como hospitaleira”.
"Os deslocamentos e seus contatos interculturais apresentam desafios subjetivos profundos tanto para quem imigra como para as sociedades que recebem os novos grupos"
Sylvia Dantas, professora da Unifesp
O curso vem responder a essa demanda social a fim de que trabalhadores(as) de saúde, assistência social, educação e demais interessados(as) compreendam o processo migratório a partir de uma perspectiva intercultural psicodinâmica. “A abordagem intercultural é por excelência interdisciplinar, o que propicia a aproximação à complexidade do tema. O curso conta com professores(as) e pesquisadores(as) da Unifesp de diferentes áreas e campi, tanto do Campus São Paulo, como Guarulhos, Osasco e Baixada Santista”, esclarece Dantas.
O objetivo é propiciar que profissionais que atuem com a população de imigrantes, refugiados(as) e apátridas realizem a prevenção e a promoção da saúde mental junto a esses grupos, compreendendo de forma ampla e profunda o processo migratório e evitando ações discriminatórias. Ao longo do curso, o(a) profissional entra em contato com temas como a história da imigração no Brasil, a história da escravidão e o processo psicológico específico da imigração. Além disso, o curso também colabora com a promoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Dantas acredita que, “assim, é possível prevenir, por parte das instituições e de seus(as) profissionais, ações etnocêntricas que podem gerar desde mal entendidos a erros diagnósticos, ou ações de exclusão e perpetuação de imagens e ações preconceituosas, formando-se uma sociedade voltada para o respeito à diferença”.
Em 2019, junto ao curso, foi criado o projeto de extensão Interculturalidade e Cuidado na E/I-Migração, também vinculado ao projeto de pesquisa Imigração, Saúde Mental e Interculturalidade: questões emergentes e preparo intercultural em São Paulo, vinculado ao núcleo de pesquisa Contato entre Culturas, Imigração, Saúde Mental e Interculturalidade. Dantas destaca o projeto de Acolhimento Psicossocial Intercultural da Unifesp, voltado para a promoção e prevenção em saúde mental de pessoas que vivem entre fronteiras culturais, como imigrantes, descendentes de imigrantes, pessoas em situação de refúgio, indígenas migrantes e retornados(as). O projeto conta com uma equipe especializada em questões culturais envolvidas no processo de deslocamento. “Ao mesmo tempo em que prestamos um serviço, realizamos o aprofundamento do conhecimento acerca do fenômeno migratório”, destaca Dantas.
Projeto de Acolhimento Psicossocial Intercultural da Unifesp é voltado para a promoção e prevenção em saúde mental de pessoas que vivem entre fronteiras culturais
O Acolhimento Psicossocial Intercultural se dá por meio de encontros presenciais no Ambulatório de Medicina Geral e Familiar (AMGF) do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp, além da modalidade on-line para pessoas que vivem fora do Estado de São Paulo ou do país. Os atendimentos são realizados em português, espanhol, francês e inglês. O agendamento pode ser feito pelo e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. ou pelo Whatsapp (11) 99179.1699. O projeto dá continuidade a iniciativas de orientação intercultural desenvolvidas anteriormente na Universidade de São Paulo (USP) e no Campus Baixada Santista da Unifesp. Sylvia Dantas pontua ainda que, junto ao atendimento psicológico, há também, nos casos necessários, atendimento psiquiátrico oferecido por residentes de Psiquiatria, supervisionados(as) por Carmen Santana.
Em 2021, um grupo de pesquisadores(as), incluindo professores(as) da Unifesp, lançou o Guia em Saúde Mental e Atenção Psicossocial para População Migrante e Refugiada no Brasil, desenvolvido a partir do curso on-line de mesmo nome ministrado para profissionais de todo o Brasil, promovido pela Agência da ONU para as Migrações (OIM-ONU). O guia se constitui como um instrumento para auxiliar aqueles(as) que trabalham diretamente com esses grupos, preparando-os(as) para uma realidade cada vez mais presente e complexa.
Quando pesquisador e tema de pesquisa estão entrelaçados
O venezuelano Jesús Enrique Quijada Flores ingressou em 2020 no curso de Educação Física do Instituto de Saúde e Sociedade (ISS/Unifesp) – Campus Baixada Santista, por meio do Processo Seletivo para Refugiados(as), Apátridas e Portadores(as) de Visto Humanitário. “Na época, foi a universidade pública que estava mais próxima de mim e que oferecia a oportunidade para estudantes internacionais”, relembra. Para ele, o processo de ingresso foi simples. “Possuía os documentos necessários, e o passo a passo era intuitivo, tudo baseado na minha experiência. Um ponto negativo foi o fato de que a prova foi realizada em São Paulo”, avalia.
Sobre a experiência como estudante internacional na Unifesp, Flores afirma que, dentro do campus, teve uma experiência positiva, tanto em termos acadêmicos quanto interpessoais. “Todo mundo foi prestativo e o acolhimento existiu. Não lembro de ter sofrido algum preconceito. Em relação a dificuldades, cito apenas as acadêmicas no começo, lembrando que vivemos os dois primeiros anos de curso durante a pandemia”. Quanto às oportunidades que teve ao longo do curso, Flores cita a participação no Programa de Educação Tutorial (PET) - Educação Física, a tutoria e inserção acadêmica para estudantes refugiados(as), apátridas e portadores(as) de visto humanitário, a bolsa outorgada em parceria com o Banco Santander e a bolsa social concedida por meio do Núcleo de Apoio ao Estudante (NAE), do Programa de Auxílio para Estudantes (Pape).
Em seu trabalho de conclusão de curso, orientado por Débora Galvani, ele buscou reunir informações para poder compreender como se dá o ingresso desses(as) estudantes nos cursos de graduação da universidade. “A experiência como estudante internacional foi um grande motivador para o estudo, trata-se de uma pesquisa em que pesquisador e tema de pesquisa estão entrelaçados. Na época, tínhamos ciência de que era o primeiro trabalho dentro da universidade sobre esta temática”, afirma Flores.
Flores pesquisou o ingresso de estudantes na Unifesp por meio do Processo Seletivo para Refugiados(as), Apátridas e Portadores(as) de Visto Humanitário
Por meio de um estudo exploratório, realizado por meio de levantamento bibliográfico e de documentos, o então graduando fez uma análise dos editais de processo seletivo para estudantes internacionais de 2019 a 2022. Após, foi feita a leitura e identificação de questões que se referem ao procedimento de ingresso desses estudantes na Unifesp. A análise foi elaborada a partir dos seguintes temas: acesso à informação; acessibilidade linguística; divulgação dos editais; meio de inscrição; processo seletivo; e sigilo.
O estudo mostrou que nem todos os campi disponibilizaram vagas exclusivas entre os anos de 2019 e 2022, que nem todas as vagas foram ocupadas e que, muitas vezes, não foram respeitadas as cláusulas de sigilo dos editais. Dentro dos editais analisados, foi encontrada uma discrepância significativa entre o número de habilitados(as), não habilitados(as) e convocados(as) para matrícula, motivada principalmente por questões de documentos. “Isso faz com que pensemos se o acesso é realmente facilitado, como estamos utilizando o número de vagas ofertadas, se todos(as) estão realizando a matrícula e, de fato, permanecendo na instituição”, reflete Flores.
A pesquisa evidenciou ainda que a documentação exigida pode ser uma barreira de acesso, sobretudo a comprovação de conclusão do ensino médio, que, no período analisado, dificultou a homologação de mais de 500 estudantes. Apesar de se tratar de um processo seletivo diferenciado e com mudanças ao longo dos anos, o trabalho demonstrou que ainda há barreiras para o acesso ao ensino superior, bem como dificuldades de permanência estudantil. Um ponto sugerido pelo autor foi a criação de uma câmara técnica para o grupo de estudantes internacionais, alguma forma de acolhimento para esse grupo. Além disso, foi proposta a criação de uma monitoria para oferecer apoio linguístico, como ação complementar e de caráter contínuo, já que a barreira linguística é uma demanda e uma necessidade recorrente. “A investigação demonstrou a importância de se criar consciência sobre o tema. Nós apontamos a necessidade de se orientar novas ações para a capacitação por parte dos(as) servidores(as) em direitos humanos e migrações, que seja visto como um plano a implementar, para que as universidades apliquem de forma conjunta”, finaliza Flores.
“A investigação demonstrou a importância de se criar consciência sobre o tema"
Jesús Flores, pesquisador
Carlos Alfredo Rivas Gomez também pesquisou, em seu trabalho de conclusão do curso de Ciências Sociais da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) - Campus Guarulhos, sob a orientação de José Lindomar Albuquerque, a presença de refugiados(as) na universidade pública brasileira a partir de uma análise do programa de ingresso de refugiados(as), apátridas e portadores(as) de visto humanitário nos cursos de graduação da Unifesp no período de 2020 a 2024. O objetivo principal do estudo foi explorar a dinâmica do ingresso e da permanência dos(as) estudantes migrantes, refugiados(as) e apátridas nas universidades públicas, com um enfoque particular na Unifesp.
Gomez afirma que escolheu o tema devido à escassez de pesquisas na área. “Durante o processo de planejamento e estruturação do projeto de pesquisa, não encontramos trabalhos acadêmicos que abordam o tema. Essa questão me levou a analisar o número de estudantes que têm ingressado na Unifesp por meio do programa, os pontos positivos e negativos na visão desses(as) estudantes(as) e as melhorias a serem propostas”, explica.
Entre os principais resultados da pesquisa, Carlos destaca a variação nas inscrições ao longo dos anos, com um pico em 2022 (241 inscritos) e uma queda subsequente (162 inscritos em 2023 e 63 inscritos em 2024), o que sugere que fatores externos, como a divulgação do programa e o impacto da pandemia, influenciaram diretamente no número de interessados(as). A análise por nacionalidade revelou a predominância de candidatos(as) provenientes da África e da América Latina, dois continentes que, durante os últimos anos, têm sido afetados por desastres naturais, problemas políticos e econômicos, entre outros. Em termos de gênero, a pesquisa mostrou uma clara disparidade, com a maioria dos(as) inscritos(as) sendo do gênero masculino.
O trabalho também evidenciou que a exigência de realização da prova de ingresso em português foi um obstáculo significativo, especialmente para aqueles(as) com menor domínio do idioma. Muitos(as) estudantes relataram também dificuldades com a adaptação ao vocabulário acadêmico, além da necessidade de conciliar estudos e trabalho. Alguns(as) tiveram que abandonar seus empregos para se dedicar à universidade, enfrentando instabilidade financeira. Foram relatadas ainda experiências de discriminação e dificuldades de socialização devido à idade, gênero ou origem estrangeira.
Carlos Gomez, assim como Jesús Flores, também está entrelaçado com seu tema de pesquisa, já que é venezuelano e ingressou na Unifesp em 2021 por meio do Processo Seletivo para Refugiados(as), Apátridas e Portadores(as) de Visto Humanitário. Ele relatou os desafios que enfrentou durante a seleção. “Apesar de ser um processo tranquilo, por ser on-line, ao mesmo tempo é um processo burocrático pela quantidade de documentos exigidos. Por exemplo, um dos documentos solicitados é o certificado de conclusão do ensino médio realizado no exterior, devidamente validado no Brasil. Muitas vezes, os(as) migrantes não vêm com esse tipo de documento, porque, no momento de migrar, não pensamos em fazer uma faculdade, o foco está em arrumar emprego e começar a construir uma vida do zero”, pontua.
Sobre sua experiência ao longo do curso, Gomez considera fundamental a sensibilização da comunidade acadêmica para facilitar a adaptação dos(as) estudantes internacionais à universidade. “Minha experiência foi realmente desafiadora. Acredito que a Unifesp precisa sensibilizar seu público para receber estudantes de outros países. Alguns professores(as) e alunos(as) não conheciam o programa e não sabiam que havia um refugiado(a) na turma. Esse é um dos pontos principais que deveria ser trabalhado a curto prazo a fim de dar mais visibilidade para esses(as) estudantes, para que consigam se sentir acolhidos(as) e pertencentes”, avalia.
"Acredito que a Unifesp precisa sensibilizar seu público para receber estudantes de outros países"
Carlos Gomez, pesquisador
Apesar dos desafios, Gomez expressa gratidão à universidade pela oportunidade de ingressar no ensino superior. “Eu sou muito grato à Unifesp por ter aberto as portas para estudantes refugiados(as), apátridas e portadores(as) de visto humanitário. Entendo que é um programa novo, que precisa de alguns ajustes. Espero que, com minha pesquisa, possam ser feitos esses ajustes tão necessários para se conseguir ter uma política pública efetiva e que, cada vez mais, tenham estudantes se formando e conseguindo transformar suas vidas por meio da educação pública e de qualidade".