No ano em que o salário mínimo beirava os Cr$6 mil (seis mil cruzeiros), Ayrton Senna tornava-se bicampeão mundial de Fórmula 1, Fernando Collor confiscava a poupança dos brasileiros e o filme Querida, Encolhi as Crianças estreava nos cinemas, o Brasil se tornava o único país no mundo, com mais de 100 milhões de habitantes, a optar por um sistema universal de saúde. A Lei n° 8.080/1990 materializou os clamores sociais que remontavam à década de 1970, quando começou o movimento pela Reforma Sanitária no país. A legislação que formalizou o Sistema Único de Saúde (SUS) representou apenas o segundo passo – o primeiro foi a própria Constituição Federal de 1988.
Antes disso, “tudo era mato.” Ou melhor, era o Inamps. O Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, após 1977, protagonizava a atenção em saúde no Brasil ao lado dos serviços de saúde municipais, estaduais e assistencialistas, como os hospitais universitários – a exemplo do próprio Hospital São Paulo (HSP/HU Unifesp). O Inamps, extinto em 1993, era coordenado pelo Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), hoje com o nome de Ministério da Previdência Social, e tinha uma face que causaria estranheza às gerações que podem utilizar os serviços da atenção primária em uma Unidade Básica de Saúde, geralmente disponível no próprio bairro onde residem.
Apenas os empregados que trabalhavam com carteira assinada e contribuíam com a Previdência tinham direito a consultas, exames e cirurgias. Todo mês era descontado do salário dessas pessoas um percentual, usado para dar acesso aos hospitais próprios e conveniados do Inamps. Os que não pertenciam ao mercado formal de trabalho, contudo, recorriam a hospitais universitários, entidades filantrópicas, Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs), secretarias estaduais de saúde e secretarias municipais de saúde.
É uma informação bastante desanimadora se levarmos em consideração que, em 1980, o número de cidadãos com emprego formal no país não passava de 60% da população. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-IBGE) realizada dez anos depois mostrou que esse número não se havia alterado no período em foco. A conclusão é que uma média de 50 milhões de pessoas, por ano, foi marginalizada pelo Estado ao tentar acessar o atendimento médico entre 1980 e 1990.
Unidade Básica de Saúde Fluvial, vinculada ao SUS e à prefeitura de Itupiranga, para atendimento das comunidades ribeirinhas do rio Tocantins, em 2021 (Imagem: Hallel / CC)
Palácio de Manguinhos, sede da Fiocruz, no Rio de Janeiro (Imagem: Karla Tauil / CC)
Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em Rio Branco (Acre) / (Imagem: Agência de Notícias do Acre - Flickr)
Agência de Notícias do Acre - Flickr / (Imagem: Jatobb / CC)
Você continua pagando
O SUS foi criado para formalizar um dos pontos previstos na Constituição Federal (CF) de 1988: o direito à saúde. Do artigo 196 ao 200, a Lei Maior detalha essa conquista da população, determinando os responsáveis por sua administração e os meios de seu financiamento. A partir de então, as esferas do governo – União, Distrito Federal, Estados e municípios – passam a financiar o sistema, devendo gerar verbas suficientes para custear as despesas dos serviços públicos de saúde. Contudo, essa estrutura de captação é mais complexa do que se costuma imaginar e não se restringe a uma lei ou a uma única fonte orçamentária.
Além da CF, o financiamento do SUS é pautado pelas seguintes Emendas Constitucionais: n° 29/2000, que estabelece a vinculação de recursos nas três esferas de governo para a cobertura das despesas decorrentes da operação do sistema; n° 86/2015, que torna obrigatória a execução de parte da arrecadação de impostos em serviços e ações de saúde; e n° 95/2016 (referente ao teto de gastos públicos), que institui o novo regime fiscal.
Até a EC nº 29/2000, o SUS ficou sem vinculação de gastos, ferramenta que permite estabelecer o elo entre uma receita e uma despesa específica. Conforme explica Luiz Augusto Finger França Maluf, docente do Departamento de Ciências Atuariais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco, somente a partir dos anos 2000 a União formalizou essa vinculação da verba do SUS à arrecadação de impostos em território nacional. “O gasto mínimo em ações e serviços públicos de saúde passou a ser de 15% da receita corrente líquida da União.”
“Essa verba se compõe, principalmente, do valor arrecadado com dois impostos bastante conhecidos: o PIS/Pasep (Programa de Integração Social e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social)”, complementa. Ambos os impostos são recolhidos de pessoas jurídicas de direito privado, ou seja, de empresas privadas, sempre que essas organizações obtêm receitas durante o mês. É nesse ponto que se percebe a grande diferença entre o Inamps e o SUS.
“Privatizar o SUS?”
Macas no corredor, horas na fila de espera pelo atendimento. Grande parte das reclamações da população gira em torno desses dois aspectos. E as queixas, por vezes, deixam de ser feitas pelos canais oficiais (como as ouvidorias), indo parar onde o usuário se sente ouvido – seja em uma rádio popular, seja em um site de denúncias, como o Reclame Aqui. Conforme explica José Roberto Ferraro, diretor-superintendente do Hospital São Paulo (HSP/HU Unifesp), é uma situação indesejada que tem diversas causas.
“Recebemos mais do que podemos atender. Pelo sistema eletivo, o paciente é chamado para fazer um procedimento que estava aguardando há certo tempo, como a cirurgia ortopédica para um problema crônico. O sistema de urgência, pelo contrário, atende na hora. A prerrogativa é que, mesmo com todos os leitos ocupados, o hospital continue atendendo sem fechar suas portas. É isso que faz do SUS um sistema diferenciado. Isso é ética médica. Não é cinema ou restaurante”, alerta.
Em decorrência dessas dificuldades, surgem microdiscursos criados por grupos com interesses políticos diversos. O principal deles é o que defende a privatização do SUS. Entretanto, acima do pânico, revolta ou euforia que essa ideia possa gerar, o fato é que o SUS não pode ser privatizado. “O que gera confusão é a administração da infraestrutura, que pode ser feita por empresas privadas por meio de contratações públicas. São organizações que fornecem equipamentos, conhecimento técnico e mão de obra para as operações cotidianas. Essa relação entre o público e o privado está prevista na legislação, e uma das principais leis a tratarem disso é a de n° 9.637/1998, que disciplina a atuação das organizações sociais (OS). Identificadas como ‘terceiro setor’, tais organizações operam de forma complementar ao Estado em atividades socialmente relevantes, sem integrar a administração, podendo receber para isso recursos públicos. Atualmente, elas agilizam o processo de contratação de pessoal, que ocorre de forma mais lenta por meio do concurso público, ou mesmo possibilitam a contratação quando há restrições devido ao teto”, detalha o médico.
Para Ferraro, essa dinâmica precisa mudar. Segundo ele, porém, não é o horizonte da privatização que traz respostas nem a abertura de mais unidades de saúde.“É preciso maior organização, intervir para efetuar o encaminhamento eficaz dos pacientes. Um exemplo disso é o fato de uma pessoa com dor de cabeça procurar um hospital para conseguir a consulta em vez de se dirigir a uma unidade de Assistência Médica Ambulatorial (AMA) ou Unidade Básica de Saúde (UBS). O hospital público presta assistência, mas orienta o paciente para que procure uma dessas unidades e realize o atendimento no lugar certo.”
Hospital São Paulo realiza primeira cirurgia de correção da encefalocele [malformação que acontece na fase de desenvolvimento do tubo neural do feto] pelo SUS. O procedimento ocorreu com o aporte das tecnologias de microscopia 3D e resolução das imagens em full HD
É preciso aperfeiçoar o que existe
“Para haver mais investimento, não é necessário pagar mais impostos, e sim efetuar a divisão adequada dos recursos existentes. O país tem tantos fundos monetários, em bilhões de reais, que não são gastos. A política de distribuição dos recursos arrecadados precisa ser revista. Os países que priorizaram saúde e educação na distribuição dos impostos estão mais bem posicionados hoje. Estamos vivendo justamente o contrário do ideal, que é a limitação no teto dos gastos públicos. O problema é que há segmentos da sociedade que se apropriam do assunto para fins políticos, e isso tem de acabar quando falamos sobre saúde e educação. O SUS é suprapartidário”, assegura Ferraro .
A implantação efetiva da organização do SUS, as restrições orçamentárias causadas pelo teto de gastos e as distorções sobre a finalidade da judicialização da saúde foram os três aspectos mais citados como ameaças potenciais ao SUS pelo diretor-superintendente do HSP/HU Unifesp e por outros sete entrevistados da Entreteses, diretamente ligados à Unifesp pelo trabalho no ensino, na pesquisa e na linha de frente do Hospital São Paulo.
Arthur Chioro, professor adjunto do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo e ex-ministro da Saúde, afirma que, atualmente, mais de 40% dos hospitais são de pequeno porte e, por isso, têm baixa resolutividade. “Há 40 anos existiam poucos centros de saúde voltados para o pré-natal, hanseníase, tuberculose e vacina. Hoje, com mais de 40 mil Unidades Básicas de Saúde (UBSs), milhares de ambulatórios de especialidades, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e Centros de Atenção Psicossocial (CAPSs), o hospital adquire um novo papel na configuração assistencial. São mais de 4 bilhões de procedimentos ao ano”, complementa.
O ex-ministro argumenta que era comum as enfermarias de Pediatria estarem cheias de crianças com diarreia, desnutrição grave, escarlatina ou sarampo. “O saneamento básico, a atenção primária, a vacinação e a melhoria das condições de vida mudaram completamente o perfil das enfermarias. Na época atual, esses mesmos locais registram entrada de crianças para cirurgias e atendimento relacionado a traumas, hematologia e, durante o inverno, doenças respiratórias. Com muito menos leitos, é possível atender a uma grande quantidade de pessoas. As doenças preveníveis por atenção primária deixaram de ocupar os hospitais.”
Judicialização da saúde
“Há dois lados nessa moeda. Por um lado, é uma proteção do cidadão contra as negativas dos gestores públicos (federais, estaduais e municipais) no cumprimento das obrigações constitucionais. Por outro, verifica-se que a iniciativa é usada equivocadamente por indústrias, médicos e os próprios cidadãos como um atalho para obter medicamentos e tratamentos de alto custo. Isso gera iniquidade no tratamento dispensado à população, pois os que conseguem contratar um advogado e mover uma ação judicial contra o SUS não são os que mais precisam. Aliás, a judicialização da saúde, por vezes, é um espelho da falta de financiamento da saúde. Há produtos (como medicamentos) ou equipamentos que já poderiam ter sido aprovados para uso no SUS e que ainda não foram incorporados no sistema por falta de verba.”
Teto de gastos
“Se o SUS foi historicamente subfinanciado, a emenda que instituiu o teto de gastos fez com que ele passasse a ser ‘desfinanciado’, colocando em risco sua existência como sistema universal. Nesse contexto, temos ainda que lidar com constantes tentativas de intromissão indevida do Parlamento na execução do orçamento da saúde, como as que intencionam executar parte dele por emendas parlamentares. O orçamento do SUS vem aumentando gradativamente ao longo dos anos, mas esse aumento não é real. Somando as demandas das três esferas do governo, o gasto público com saúde, em 2019, foi de R$3,68, por habitante e por dia – menos do que uma passagem de ônibus. Isso para garantir de vacinas a transplantes, uma conta que não considera a anormalidade trazida pelo coronavírus. O gasto vem caindo desde 2014 e, com o teto de gastos, cairá mais ainda. O orçamento da saúde deve considerar o aumento da população e os gastos naturais decorrentes de seu envelhecimento – quase dez vezes maiores do que o gasto com a população em geral. O Conselho Nacional de Saúde considera exatamente essas variáveis.”
(Imagem: Bruno Cecim / Ag. Pará)
Telemedicina ganha espaço com emergência na saúde pública
- Os serviços de saúde mais acessados pela internet foram: agendamento de consultas médicas; agendamento direto com profissional de saúde; agendamento de exames; acesso ao resultado de exames.
- 55% dos que não apostaram na web para cuidar da saúde apontaram preocupação com a segurança de seus dados pessoais.
- 50% dos usuários de serviços on-line optaram por aplicativos de mensagem, como WhatsApp e Telegram; 28%, por aplicativos da rede pública; e 30%, por aplicativos de plano de saúde.
- Entre os usuários de serviços de triagem virtual para identificar os sintomas da covid-19, a maioria (71%) utilizou o aplicativo do SUS.
Painel TIC Covid-19, pesquisa sobre o uso da internet no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus (edição 2 - 1º/10/2020), realizada com 2.408 usuários, a partir de 16 anos, pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), departamento do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), ligado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
A saúde e a telemática se encontraram oficialmente na década de 1960, quando foi realizada a telemetria [técnica de obtenção, processamento e transmissão de dados a longa distância] por rádio para monitoramento dos sinais vitais de astronautas em órbita ou em viagem à Lua. O uso cotidiano, entretanto, só foi sentido no Brasil mais de 50 anos após o episódio. A telessaúde ganhou importância com o advento da pandemia de coronavírus, pois o uso de tecnologias da informação, juntamente com os recursos das telecomunicações, para acessar serviços de saúde não era mais uma opção: tornou-se uma premissa de sobrevivência. No SUS, a prática se instaura gradativamente e é cada vez mais aprimorada. O Programa Telessaúde Brasil Redes é uma iniciativa em âmbito nacional que busca melhorar a qualidade do atendimento e da atenção básica no Sistema Único de Saúde (SUS), integrando ensino e serviço por meio de ferramentas de tecnologia da informação, que oferecem condições para promover a teleassistência e a teleducação.
"O Programa Telessaúde Brasil Redes dispõe de uma poderosa rede de informação em saúde e, por meio dela, é possível levar informações estratégicas a profissionais de saúde e à população em geral. Após estabelecermos o primeiro núcleo desse programa no Estado de São Paulo, em 2014, partimos para a adequação dos dados gerados no Núcleo de Telessaúde à Lei Geral de Proteção de Dados. Por isso, criamos uma plataforma de telessaúde própria para o atendimento on-line, a Pegasus, que está em processo de patenteamento com a Agência de Inovação Tecnológica e Social (Agits/Unifesp). Foi um ano bastante movimentado: realizamos mais de 4.500 teleconsultorias e capacitamos mais de 12 mil profissionais de saúde. Sem o SUS, a telemedicina e a telessaúde não existiriam para o conjunto da população, mas apenas para os conveniados da saúde suplementar. Hoje, fazer uma discussão de caso é tão ou mais importante do que atender exclusivamente o paciente."
Claudia Galindo Novoa, professora associada do Departamento de Informática em Saúde da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo e coordenadora do Núcleo Estadual Telessaúde São Paulo Unifesp (Fotografia: Alex Reipert)
Espaço para absorção de novas tecnologias, principalmente as desenvolvidas em universidades públicas
De acordo com o Ministério da Saúde, “são exemplos de tecnologias em saúde: medicamentos, produtos para a saúde, procedimentos, sistemas organizacionais, educacionais, de informação e de suporte e os programas e protocolos assistenciais por meio dos quais a atenção e os cuidados com a saúde são prestados à população.” Somente a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename 2020) lista mais de 700 medicamentos, uma relação que é atualizada anualmente. Esses incrementos periódicos são conhecidos como incorporação de tecnologias pelo SUS, cuja triagem inicial é realizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e que consideram tanto as necessidades dos pacientes quanto as do sistema público de saúde. Quem observa de perto cada um desses processos é a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), instância assessora do Ministério da Saúde, criada pela Lei nº 12.401/2011.
"Arrisco dizer que uma das principais carências tecnológicas do SUS é um bom sistema de gerenciamento nacional de dados. Dados em saúde são uma fonte inesgotável de riqueza, e essa incorporação traria uma grande agilidade ao sistema, além de maior segurança. Outro ponto é o espaço que ainda existe para a expansão da telemedicina, capaz de levar atendimento a locais que a internet não alcança. A informação correta permite que o sistema seja mais eficiente, e isso também traz economia, como evitar que um medicamento seja receitado erroneamente. O SUS exerce um papel brilhante ao atender um enorme contingente de pessoas, mas é preciso combater o desperdício, e isso só se faz com organização."
Jean Faber Ferreira de Abreu, professor adjunto do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo
A segunda (e atual) grande crise do SUS
A judicialização da saúde teve um primeiro impulso a partir de 1996, atingindo seu pico no início dos anos 2000, como resposta à epidemia de aids, que demandou uma ação do Estado por meio do Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e Aids. Podemos falar de uma segunda onda do fenômeno, que se acentua a partir de 2014 e 2015, como aponta a auditoria operacional do TCU (Acórdão 1787/2017 - Plenário). O relatório mostra a evolução de gastos - de 15 vezes em um período de oito anos - com a compra de medicamentos ordenada pela Justiça, chegando a mais de 1 bilhão de reais no âmbito federal e a 7 bilhões de reais (estimados) nos três níveis de governo. Essas despesas concentraram-se em medicamentos de altíssimo custo, como aqueles destinados ao tratamento da mucopolissacaridose [doença genética do metabolismo causada por deficiência de enzimas]. A judicialização tira o poder de compra e a capacidade de planejamento do governo brasileiro, que poderia, por meio de licitações, obter preços e condições melhores. O caso da fosfoetanolamina sintética é um dos exemplos extremos, pois gerou um altíssimo custo para a Universidade de São Paulo (USP), que teve de administrar milhares de ações judiciais relativas a um medicamento que sequer tinha registro na Anvisa. Como criar uma cultura de planejamento no Estado brasileiro? Acredito que essa proposta passa pela valorização dos profissionais de gestão pública e por experiências interinstitucionais, que partilham informações entre o Executivo e o Legislativo, como os Comitês Interinstitucionais de Resolução Administrativa de Demandas da Saúde (Cirads), ou ainda pelas ferramentas de subsídios técnicos aos magistrados, desenvolvidas pelos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus) , como a plataforma digital e-NAT-Jus.
Ivan César Ribeiro, professor adjunto de Direito da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco
Gastos que não acompanham a inflação
O Brasil viveu um superavit primário, por vários anos, na década de 1990 e no início dos anos 2000, que chegava a 4% do PIB. Atualmente, entretanto, presenciamos um deficit primário, e as contas públicas estão em dificuldade. A proposta do governo, quando essa situação começou a se desenhar na economia, foi seguir as recomendações do Banco Mundial, diminuindo gastos com saúde e educação. A Emenda Constitucional relativa ao teto de gastos públicos estabeleceu, a partir de 2017 até 2036, um limite de 15% da receita líquida da União registrada em 2017 para gastos com saúde, mediante reajustes anuais que não podem exceder à variação anual do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Havendo crescimento do PIB em termos reais, no interstício até 2036, tal crescimento não será acompanhado pelo aumento dos gastos em saúde e educação. Anteriormente à EC nº 95/2016, desde o ano 2000, os gastos com saúde eram vinculados ao crescimento nominal do PIB. Para se ter uma ideia do impacto que tal modificação pode gerar, de janeiro de 1995 a novembro de 2020, o crescimento nominal do PIB foi de 1.337%, enquanto o crescimento do IPCA foi de 467,65% no mesmo período. Isso significa que, por volta dos últimos 15 anos, caso o crescimento dos gastos com saúde (e também educação) ficasse limitado à variação do IPCA, esse crescimento seria equivalente a aproximadamente 37% do que poderia ter sido no caso de ser corrigido pela variação nominal do PIB. Outro aspecto preocupante é que a variação dos preços dos insumos do sistema de saúde não acompanhará as variações do IPCA, mas as variações do Índice de Preços de Medicamentos para Hospitais (IPM-H) e também da taxa de câmbio, haja vista que há insumos e medicamentos importados, o que poderá levar a uma deterioração maior ainda das aquisições para a saúde pública até 2036.
Luiz Augusto Finger França Maluf, professor assistente do Departamento de Ciências Atuariais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp) - Campus Osasco
Quando socorre os usuários de planos de saúde
O fato é que o orçamento está cada vez mais comprometido com o grande volume de decisões judiciais. Quando a CF reconhece que todos têm direito à saúde, o Supremo Tribunal Federal entende que esse acesso é ilimitado. Contudo, a opção por ofertar um tratamento específico de 400 mil reais a um número x de pacientes que moveram ação para ter acesso a ele pelo SUS, poderia suprimir das farmácias populares medicamentos simples e baratos que seriam destinados a um número muito maior de pessoas – pois o orçamento é limitado. Isso afeta o caráter universal do SUS. Já no âmbito privado, a Lei nº 9.656/1998, em seu artigo 32, determina que, se eu tiver um plano de saúde e for atendido pelo sistema público, a operadora deverá ressarcir o procedimento realizado por esse sistema – com base em uma tabela de valores aprovada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). É polêmico, pois, se o plano de saúde ressarcir o SUS, irá repassar indiretamente o gasto a esse e a outros segurados. Tudo isso mostra que a sociedade, de forma geral, está aprendendo a equilibrar direitos com orçamento restrito.
Márcio Ferro Catapani, professor adjunto de Direito Comercial da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (Eppen/Unifesp)- Campus Osasco e juiz federal
O caso do planejamento familiar
Somente no segundo semestre de 2020, a base de dados do SUS (DataSUS ) registrou 11.465 autorizações para internação hospitalar de pacientes com laudo médico para realização de laqueadura. O arrependimento quanto à adesão a essa conduta gira em torno de 10%, taxa considerada alta para um método mais complicado do que a cirurgia esterilizadora. Contudo, essa é apenas uma face – sem dúvida, desafiadora – do planejamento familiar, serviço extremamente significativo do SUS em um país que ainda permite que visões ideológicas se coloquem à frente dos direitos reprodutivos de homens e mulheres. Nos termos da lei, é simples. Na prática, falta verba para a compra de métodos contraceptivos.
"Ela tinha 14 anos, na época, e teve contato conosco por meio do grupo de educação sexual. Sua mãe estava na sala de espera. No decorrer da reunião ficou à vontade e decidiu comentar. “Eu engravidei do bonde.” Após a reunião com o grupo de Planejamento Familiar do Hospital São Paulo, ela passou a usar métodos contraceptivos. As famílias que nos procuram, como essa mãe, buscam uma consulta médica. As reuniões, entretanto, têm uma finalidade principalmente educativa. E devem ser lúdicas. Muitos vêm no horário de trabalho e deixam seus filhos em algum local; então, a pressa é grande para irem embora. Quando são avisados de que haverá uma palestra antes da própria consulta, é normal comentarem: “Queria só uma pílula anticoncepcional, uma laqueadura.” Os pacientes entram bravos, mas no final saem perguntando sobre a próxima reunião. Nossa função é mostrar todas as opções que aquela pessoa tem para se prevenir de uma gravidez indesejada, para que chegue à consulta preparada para pedir o que queria. Grande parte dos pacientes que nos procuram acredita que existam somente algumas poucas opções, como laqueadura e pílula; saem daqui, porém, sabendo que há vasectomia, adesivo, DIU de cobre, DIU hormonal, camisinha feminina… Nós preenchemos uma lacuna enorme em um país onde são distribuídos livros ou folhetos sobre educação sexual que mencionam o coito interrompido como um método contraceptivo. Em nossos atendimentos, identificamos uma média de 70% de pacientes que engravidaram com essa prática. A educação em saúde desconstrói mitos, tabus e comportamentos errôneos sobre uso e ação dos métodos contraceptivos. Mesmo assim, todas as nossas aquisições relacionadas a eles são informais, inconstantes, os métodos hormonais são amostras grátis oferecidas por laboratórios. Costumamos atender cerca de 800 pessoas por mês. Imagine se todas elas saíssem com métodos contraceptivos de alta eficácia!"
Patricia Albuquerque Moraes, ex-enfermeira-chefe do setor de Planejamento Familiar do Hospital São Paulo (HSP/HU Unifesp)
Nem mais leitos, nem mais impostos; a resposta está na organização
Não existiria enfrentamento da pandemia sem o Sistema Único de Saúde. Eu falo hoje da pandemia, mas poderia ser outra epidemia ou endemia. Todos podem ser atendidos, inclusive quem tem plano de saúde. Após os primeiros 30 dias da pandemia, os hospitais já estavam com sua capacidade no limite, e o serviço que deu vazão aos atendimentos emergenciais foi o SUS. Nas cidades onde havia mais equipamentos, houve mais atendimentos, e onde havia menos (como Manaus) o sistema colapsou. Contudo, ainda é preciso melhorar, sim, começando pela organização. O ideal seria que todos fossem admitidos pela atenção básica e fossem “subindo” para a atenção secundária e terciária, dependendo da complexidade do caso. Os hospitais recebem, à porta de entrada, não apenas casos emergenciais, mas também uma grande quantidade de pessoas que poderiam dirigir-se a unidades de saúde próximas de suas casas. Essas instituições não são locais para atendimento de baixa complexidade. Outra questão que precisa ser superada é o desperdício, como os exames desnecessários que são pedidos sem nenhuma indicação para determinado caso. Tais ações resultam em laboratórios sobrecarregados e uso de insumos – que já são escassos. É muito importante frisar, porém, que esse desperdício está longe de ser a principal causa do deficit orçamentário na saúde pública. No SUS, é preciso caber tudo e todos, mas sem organização e financiamento abre-se o caminho às críticas.
José Roberto Ferraro, diretor-superintendente do Hospital São Paulo (HSP/HU Unifesp) e docente do Departamento de Cirurgia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo
Unifesp na linha de frente no combate à covid-19
Edição 14 • novembro 2021